“Scherezade aprende a sobreviver. As regras da vida não estão escritas. Cabe-lhe inventá-las a cada aurora (2)”
“A memória dos Homens é curta”, dizia a minha professora de História do 7º ano. Desde então, inúmeras têm sido as ocasiões em que essa frase me vem à cabeça. Os recentes acontecimentos no mundo árabe e o comportamento do Ocidente em geral e da Europa em particular são uma dessas ocasiões.
Se nas sociedades árabes o que está a acontecer é muito mais do que simples revoluções (políticas, económicas ou sociais), a Europa e os EUA, por sua vez, já não conseguem esconder a hipocrisia que tem minado as suas políticas externas e as suas atitudes que perfazem novas formas de racismo e colonialismo. Por outro lado, persistimos no erro de nunca considerar a História a partir da “periferia” ou daquilo que julgamos ainda ser “periferias”, o que deturpa sempre essa velha senhora europeia a que chamamos História. A este nível, espero que quando a poeira assentar consigamos aprender com o que “as periferias” nos estão a mostrar (e que Prigogine já tinha descrito em As Leis do Caos): já não basta descrever as mudanças dos regimes políticos e sociais no seio da nossa concepção de História; é preciso ultrapassar este ocidentalcentrismo e dialogar com as Histórias extra-europeias para que possamos viver num contexto que não se confunda com o património ocidental. Tal como nos mostraram escritores como o jugoslavo Ivo Andric, apesar de haver sempre mais bárbaros do que construtores, no fim de cada caminho de opressão, há sempre uma luz e uma oportunidade para se criarem pontes. Andric também esteve sempre ao lado dos derrotados e insultados, ainda que compreendesse os poderosos. Esta é mais uma altura da História em que devemos fazer o mesmo, pois é um facto que o mundo não vai mudar para melhor por decreto, mas pode mudar se nos remetermos para os princípios da alteridade e da empatia que devem necessariamente nortear a vida em sociedade daqui para a frente.
As máscaras do racismo
Vejamos, então, algumas das novas formas de hipocrisia histórica e de racismo que estamos a viver, com uma breve panorâmica por alguns dos pontos geopolíticos mais quentes no momento actual.
1. Muitos dos revoltosos líbios foram abatidos com armas vendidas, no ano passado, no salão de armamento líbio no qual participaram 50 fabricantes britânicos. Isto quando o Governo britânico defende uma política de “intervencionismo liberal” para acabar com regimes não democráticos. Bom, eu não sou britânica, nem líbia, mas com certeza que não quero esta democracia de que Cameron e os seus confrades falam. Das duas uma, ou armam os opressores dos árabes ou, se falamos em intervencionismo, não vendemos armas a ditadores. Não me parece algo assim tão difícil de fazer, se se quiser, claro.
2. Em viagens recentes à Suíça, consternaram-me cartazes ofensivos em ruas tão supostamente ordenadas, que insultavam os imigrantes e exortavam à sua expulsão do país. Parece que a moda está a pegar e, recentemente, a ministra do interior da Áustria, endureceu [contra] os direitos dos estrangeiros, numa tentativa inútil de travar o afluxo de refugiados do Norte de África. E a verdadeira questão é esta: o medo, que mais não é do que uma manifestação da ignorância. Não vale a pena fingir que o medo dos Europeus perante um afluxo maciço de estrangeiros não é maior do que a sua compaixão pelas vítimas de uma ditadura. Mais uma vez, recorramos à memória. Porque é que o medo ganha perante a compaixão? Entre outras razões, porque os europeus têm tido políticas externas insensatas quanto às suas relações com ditadores (a Itália e Malta assumiram compromissos vergonhosos com Kadhafi) e ainda porque muitos países da União Europeia têm políticas internas de faz-de-conta que oscilam entre uma imigração necessária e mal-gerida e o alarmismo instrumentalizado em relação ao que sai do seu quadrado. Mas, claro, já não há problema se clandestinos africanos forem contratados para colheitas sazonais sob condições desumanas e garantirem negócios para muitos desses países que ora exploram os estrangeiros que não querem receber nem ajudar ora os querem libertar em nome de uma qualquer democracia.
3. Mas se o Ocidente pouco se importa com os banhos de sangue em África (sim, porque nem se fala nos países cujas populações ainda nem sequer se conseguiram rebelar e protestar ou aqueles, como Marrocos, em que se vive numa ditadura com os tiques democráticos ocidentais), já se preocupa com a perda de influência que está a ter no mundo árabe. O académico Anthony Cordesman sintetizou bem a coisa: “A França centra a sua atenção na Tunísia sem conseguir perceber como perdeu uma zona de influência. A Grã-Bretanha, por sua vez, volta a mostrar interesse no Egipto e no Canal de Suez”. Entretanto, os EUA continuam a procurar o Wally, i.e., islâmicos radicais entre as revoluções, os russos só querem vender armas e os chineses só atendem aos seus interesses petrolíferos. As atenções viram-se agora para a Turquia que surge em posição privilegiada para negociar com os novos quadros políticos que surgem na região. É claro que a UE se vira agora para a Turquia, a mesma que não queria integrar no seu clubinho.
Insegurança civilizacional
Estes são apenas alguns factos que rodeiam algo bem mais relevante: a hipocrisia ocidental não aprende com a História, nem com os resultados das suas próprias acções. Há muito que quer os EUA quer a Europa têm usado retratos simplistas, degradantes e, por vezes, racistas dos árabes e outros povos nos órgãos de comunicação.
Por outro lado, o espaço europeu tem estado crescentemente confrontado com um processo de heterogeneização espartilhado em duas lógicas: a lógica moderna da homogenização de pensar a Europa como um grande Estado-nação e outra, baseada num conceito de unidade bricolada na diversidade, ou seja, é como um bazar em que se negoceiam diferenças. Acontece que a cultura ocidental viveu secularmente – salvo alguns momentos críticos – numa espécie de auto-contemplação da sua própria superioridade ética e política, a qual era justificada das mais diversas formas, desde a narrativa religiosa até à narrativa filosófica. A tendência foi sempre a de encarar a nossa forma de pensar e de conhecer como sendo a mais universal e mais verdadeira, sendo as outras organizações sociais e políticas julgadas a partir dessa posição.
No entanto, vivemos agora uma altura em que a auto-segurança do Ocidente volta a ser posta em causa num movimento em que nos olhamos no espelho da nossa própria face civilizacional; os modelos de relação com as diferenças (internas e externas) que a sociedade e cultura europeias desenvolveram são, por si só, um indício da actual insegurança civilizacional. A Líbia – que não tinha nada parecido com uma sociedade civil tal como a pensamos – dá-nos agora uma lição de História. Louvável é a força colectiva de que os líbios têm dado mostras; a diplomacia, esforços revolucionários estruturados, órgãos de informação limitam-se a seguir as reivindicações e as acções do povo e isto é fascinante e inédito, pois significa que o que está a mudar é também o que significa ser árabe a nível individual e colectivo.
Se há muito que os estereótipos ocidentais têm desqualificado os árabes e celebrado invasões israelitas, britânicas e americanas em nome da “democracia”, hoje são os árabes que nos mostram a oportunidade que é a união de esforços por algo muito mais importante do que a democracia hipócrita dos que carregaram a cruz da civilização e supostamente eram detentores de uma superioridade moral que lhe dava acesso ilimitado às terras, recursos, história e dignidade dos árabes. De Napoleão a George W. Bush os árabes sempre foram definidos de acordo com os objectivos coloniais e conquistadores.
O importante a reter de tudo isto é que, como notou Robert Fisk, este segundo despertar árabe da História moderna requer algumas novas definições e novas palavras. Esta rebelião das diferenças revolta-se também contra o lugar passivo que a modernidade ocidental lhes atribuiu em termos culturais, políticos e epistemológicos. Agora, essas diferenças assumem os seus próprios discursos (da diferença e não sobre a diferença) e resistem a qualquer forma de domesticação cultural. Resta agora à cultura ocidental assumir-se também como outra diferença e não como padrão com base no qual as outras diferenças devem ser definidas ou julgadas. Ora, a evolução é isto mesmo: a transição do ser da condição de escravo à condição de senhor do seu próprio destino.
Como tão bem lembrou o educador Paulo Freire, qualquer acção modificadora não é possível se não nos distanciarmos de uma visão acomodada do mundo e se formos incapazes de nos distanciarmos desse conformismo para admirar e perceber melhor o conjunto deste mundo. As diferenças, de facto, na sua incomensurabilidade de género, raça, etnia, estilos de vida, etc., não assumem como agenda nem um princípio universal comum, nem uma agenda política comum. Porque a democracia já não é um “estádio”, mas um fim em si mesmo (ou sem fim) e a “cidadania atribuída” deu lugar “a uma “cidadania reclamada”. A realização política inerente a estas mudanças tem uma geometria variável, negociável, em rede que mostra que não somos todos diferentes e todos iguais, mas sim que não há privilégios nem para diferentes, nem para iguais, pois falamos da legitimidade das diferenças regularem as suas próprias vidas. “Eu pago impostos (dever), mas quero educar (direito) os meus filhos como bem acho que eles devem ser educados”.
Numa altura em que a Europa analisa a questão do direito ao esquecimento na Internet, não nos esqueçamos que foi a “democracia ocidental”, “a chama da civilização”, “o capitalismo europeu” que esteve na origem de grande parte dos tipos de racismo que conhecemos. Não nos esqueçamos também que o progresso da civilização passa, necessariamente, pela abolição de toda e qualquer forma de preconceito. Antes de se achar sujeito a determinada cultura, nacionalidade, etnia ou religião, o homem é um ser cósmico, um cidadão do universo e, acima de tudo, perante a lei da reencarnação, a superioridade que certos grupos étnicos atribuem a si torna-se insustentável e até ridícula. A ideia de que o homem possa encarnar como branco, negro, mulato ou índio, estabelece uma ruptura com o preconceito e a discriminação raciais e políticas. Tanto que até hoje, na Inglaterra, muitos adeptos do Neo-espiritualismo rejeitam a tese da reencarnação, por não admitirem a possibilidade de terem tido encarnações em posições inferiores quanto à raça e à condição social.
Lembremos ainda que, nos Estados Unidos, foi preciso uma guerra civil para acabar com o esclavagismo. Até à década de 60, o país mais rico e poderoso da Terra, que sempre se arvorou em campeão da democracia, praticava a segregação racial. A maioria branca impunha humilhantes restrições aos negros, que não podiam frequentar as mesmas escolas, sanitários públicos, clubes ou hospitais. Na África do Sul, em pleno continente africano, uma minoria de origem europeia sustentou, durante décadas, a separação radical, relegando os donos da casa a posições de subalternidade. No Brasil, não obstante a índole fraterna de nosso povo, durante mais de três séculos muitos achavam natural a existência de homens transformados em animais de carga.
Aproveitemos, pois, este movimento do pêndulo da História para subverter a produção de ausências em que o ocidente tem sido prolífico para transformar essas ausências em objectos presentes, tornando visível o que foi obscurecido pela sociedade (e ignorância) dominante. Já não existem realidades únicas e exclusivas e, no jogo de conhecer e ser conhecido, já não deve haver lugar para relações de dependência, pois a vida que se deseja é a que “decorre da liberdade consciente, capaz de enfrentar obstáculos e dificuldades que se apresentam no relacionamento humano e na própria individualidade”(1); é essa a meta que a consciência almeja e, na inexistência do que seja local ou global, é nessa escala que tudo se joga e para onde interessa olhar. Ouçamos, portanto, as vozes do deserto(2), porque são também as nossas vozes.
Filipa M. Ribeiro
(Jornalista e investigadora)
(1) In Franco, Divaldo. O Homem Integral (1990).
(2) Referência ao livro Vozes do deserto, de Nélida Piñon.
Sem comentários:
Enviar um comentário