6.21.2010

Lídia Jorge
O Dia dos Prodígios
Publicações Europa-América
Lisboa, 1980

"Unanimismo aplicado a uma aldeia algarvia, como se esta fosse a Paris de Jules Romains. Unidade de lugar e de tempo, segundo as leis da narrativa fechada e clássica. Contudo, esse «breve tempo de uma demonstração» é uma viagem excepcional quanto e intensidade, dentro do microcosmo da realidade física, psíquica, social. A escrita da autora deste primeiro livro (já apareceu outro em 82) obedece a uma linha conceptual, lógico-estilística, que encerra uma obra romanesca sem intriga sem intriga onde apenas há puras realidades, e que por sua vez reproduz um objecto ideológico, utópico e lírico; o modo lírico é sui generis e estranhamente reconhece-se mais nas artes pláticas, na ingenuidade de Rosa Ramalho, no naïf-raffiné de Chagal, por exemplo.
Dissemos microcosmo de uma aldeia algarvia desconhecida do fluxo artístico. A sua forte, credível e sempre transcendente literalidade tem apoio em dois vectores: o primeiro, uma íntima experiência da factologia, do infra-real ao sobre-real. Cada palavra encobre uma vivência memorável e imemorial, diria, cada palavra contém a própria história. Com a palavra, o gesto, isto é, outra palavra. Este prodígio do conhecimento quase autista do gesto humano, pré-científico, protográfico, oferece, mediante essa plural matéria-prima, o material. Caso singular, Lídia Jorge opera dentro de uma literatura que não cultiva sistematicamente nem as experiências do concreto nem o conhecimento material da realidade; pelo contrário, a literatura é considerada entre nós ou um ornamento ou cosa mental, abstracta. Aqui reside a linha de força original deste primeiro romance-surpresa de Lídia Jorge.
O segundo vector-factor consiste na introdução do lúdico dentro dessa sondagem literária. Ao leitor, de Segunda, ou terceira leitura, ocorre que a A., com a matéria aqui caracterizada, opera depois através do jogo, do cálculo de probabilidades pessoal: como se as propostas e as apostas da verdade criassem uma ténue sucessão de episódios figurativos, uma vibração «Lust zum fabulieren», de élan épico; uma imaginação das probabilidades em marcha que se organiza organizando. Não será por acaso que a serpente, condenada pela ciência da natureza a arrastar-se horizontalmente, em O Dia dos Prodígios voa em todas as direcções. Este acidente do natural não se assemelha à serpente voadora de Jorge Luís Borges, curiosidade do insólito e do fantástico. O acidente do natural de Lídia Jorge é apenas um outro natural, em prisma imaginário, como qualquer outra visão do mundo.
Extremamente vivo, o livro, articulando corpo real e imaginário, representativo da senso-motricidade verbal, individualizado e subjectivo, identifica-nos ao longo das páginas, faz-nos naturalizar, identificar com o objecto – subjectiva e objectivamente.
Não proponho que se leia este livro de Lídia Jorge como um simples exemplo da arte de escrever, mas que se releia e decifre uma das mais ricas partituras da literatura portuguesa contemporânea, em que a ilusão da totalidade do microcosmo se conjuga com a ilusão do imediato quase cinematográfica (livro praticamente escrito no presente do indicativo; quantas frases curtas, constatativas, sem verbo, lembrando planos cinematográficos!), tudo convergindo em ilusão simbólica, esta já macrocósmica.
Ou como da aldeia da serra algarvia chegamos ao theatrum mundi.

Jorge Listopad, in Colóquio Letras, nº 67, de Maio de 1982

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