HÁ LIVROS QUE FAZEM FITA
«Bastantes foram as ficções que nos escreveram sem que tenhamos dado
conta disso…», pensei para comigo enquanto folheava ao acaso, petiscando aqui e
ali, o De Que Falamos Quando Falamos de Amor.
E então, de repente, apeteceu-me ver um filme que tivesse sido
baseado num livro que já lera e tenho a certeza me marcara, embora dele muito
pouco ou quase nada me lembrasse: A Insustentável Leveza do Ser, de Milan
Kundera. O romance, logo nos primeiros frames, saltou-me à consciência, não
como um dejá vu que era, mas como um desanoitecer da memória onde se
entrecruzavam inúmeros flashbacks derivados da consequente e exagerada utilização
do discurso e título em paragonas ou citações, quer por políticos na berra ou
pelos Mass Media que queriam fazer figura de letrados.
Todavia, o filme homónimo, realizado por Philip Kaufmann (1988), com
Juliete Binoche, Lena Olin e Daniel Day-Lewis, é mais do que uma grande história
ancorada na Checoslováquia dos finais de 60. É a materialização da
transitoriedade, aquela fluida sensação de que nada é eterno, estável e
assente; enfim, que tudo muda e só a incerteza e a dúvida alternam e retornam
no tempo, exatamente nesse tempo onde o eterno não passa de mais uma abstração
da poesis, do sonho ou evasão.
Porque A Insustentável Leveza do Ser é um filme que está dentro de
outro filme onde nada é seguro e definitivo. Onde mesmo as personagens
principais, protagonistas, se não dão a conhecer com clareza, permanecem
indistintas para além dessa vontade de viver e atravessar o espaço-quando com
que subtilmente – ou será melhor afirmar “levemente”? – se manifestam. O que, é
evidente, não obsta, nem impede, que sintamos que cada um dos seus gestos é
essencial para o desenrolar da narrativa nesse registo histórico e sentimental
que a escrita polifónica de Kundera tão exemplarmente descreve, propõe, serve, num
palimpsesto ativo em que tampouco a excelente fotografia de Nykvist consegue apagar,
para nos devolver pouco a pouco da ilusão e entrever o outro lado do rio
tingido com o naturalismo realista que a objetiva impõe. Isto é, não obstante a
diferença de suporte e veículo, o romance de Kundera finta, rasteira, o
realizador, a ponto de parecer presente mesmo quando foi intenção deste último
em que não estivesse… O que é uma grande fita!