8.30.2012


PREFÁCIO DOS EDITORES

Estas são as histórias que os cães contam quando as fogueiras ardem e a nortada sopra com força. Então cada família reúne-se em volta do seu fogo e os cachorros sentam-se silenciosamente e escutam. Quando a história termina, fazem muitas perguntas:
– O que é um homem?
Ou talvez:
– O que é uma cidade?
Ou ainda:
– O que é uma guerra?
Não há nenhuma resposta positiva para qualquer destas perguntas. Há suposições, teorias e muitas hipóteses, mas não respostas.
Nos círculos familiares muitos narradores destas histórias têm-se visto forçados a dar a antiga explicação de que apenas é uma história, que nada há que tenha os nomes de “homem” ou de “cidade” e que a verdade não se deve procurar num simples conto: um conto aceita-se, e é tudo.
Explicações deste género, embora possam satisfazer cachorros, não são, evidentemente, explicações. De fato, a verdade deve ser procurada em simples contos, como estes são.
A lenda, composta de oito contos, tem sido narrada durante inúmeros séculos. Tanto quanto pode determinar-se, não tem ponto de partida histórico e o estudo mais minucioso não consegue determinar as fases do seu desenvolvimento. Não há dúvida de que, de tanto ser relatada, se estilizou, mas não há processo para descobrir o sentido da sua estilização.  
A afirmação de alguns escritores de que é antiga e, em certa medida, de origem não canina resulta da abundância de tagarelice que acompanha os contos – as palavras e frases (e, pior que tudo, ideias) que atualmente não têm significado e talvez nunca o tenham tido. Devido ao constante relato, estas palavras e frases foram aceites e, por hábito, foi-lhes atribuído um certo valor arbitrário. Mas é impossível saber se estes valores se aproximam ou não do significado original das palavras.
Esta edição dos contos não tem a mínima pretensão de abordar a enorme quantidade de argumentos técnicos que sobre que sobre a existência ou não existência do homem, o enigma das cidades, as várias teorias relacionadas com a guerra ou qualquer dos outros inúmeros problemas se levantam e perturbam o estudioso que percorre alguma forma de existência de uma verdade básica ou histórica da lenda.
O propósito desta edição é simplesmente dar um texto completo e genuíno dos contos tal como hoje são narrados. As notas aos capítulos são utilizadas apenas para frisar os pontos de maior especulação, não pretendendo pois tirar conclusões. Para aqueles que procuram uma maior compreensão dos contos, ou das muitas dúvidas que acerca deles se levantam, há exaustivos tratados escritos por cães de muito maior competência do que a dos presentes editores.
A recente descoberta de fragmentos do que parece ter sido um extenso movimento literário tem sido apresentada como o mais forte e atual argumento para atribuir pelo menos parte da lenda ao homem mitológico (opinião discutível, claro), em detrimento dos cães. Mas até que se prove a existência evidente do homem tem pouca importância o argumento de que os fragmentos descobertos são originários do mesmo.
Particularmente significativo ou perturbador, e isso depende do ponto de vista, é o fato de o título aparente dos fragmentos literários ser precisamente o de um dos contos apresentados. É claro que as palavras, em si, são inteiramente desprovidas de significado.
Evidentemente que a pergunta fundamental é se alguma vez existiu um ser chamado “homem”. Presentemente, na ausência de provas positivas, o raciocínio prudente leva-nos a concluir que não existiu e que o homem, tal com o é apresentado na lenda, é um produto da imaginação popular. É provável que o homem tivesse surgido no início da cultura canina como um ser imaginário, uma espécie de rácico, a quem os cães pediam auxílio e conforto.
Contudo, apesar destas conclusões prudentes, há quem veja no homem um deus mais antigo, um visitante de uma terra ou dimensão mística que chegou, deu a sua ajuda e depois regressou ao ignoto.
Há ainda outros que acreditam que o homem e o cão cresceram simultaneamente como dois animais cooperadores, que podem ter sido complementares no desenvolvimento de formas culturais, mas que em certa altura, já perdida no tempo, os seus caminhos se diferenciaram.
Entre todos os fatores perturbantes dos contos (e são bastantes), o mais confrangedor é a sugestão da reverência conferida ao homem. É difícil para o leitor médio aceitar esta reverência como um simples artifício da narração. É uma reverência que ultrapassa a descuidada adoração do deus tribal, e instintivamente se sente que ela está profundamente enraizada nalguma crença ou rito hoje esquecido, envolvendo a pré-história da nossa raça.
Atualmente são poucas as esperanças que há de se vir a resolver qualquer dos vários pontos de controvérsia que fervilham na lenda.
Aqui estão, pois, os contos, para serem lidos com espírito que aprouver ao leitor – só por simples prazer, em busca de um significado histórico ou procurando alguma sugestão dum símbolo oculto. E eis o nosso melhor conselho ao leitor médio: não os tome demasiado a sério, porque a confusão total, se não a loucura, o espera se tal fizer.   

In CLIIFFORD D. SIMAK, A Cidade no Tempo, trad. Manuel Pina e Alfredo Margarido, nº 1 da coleção Escalas do Futuro, Edições Europa-América, Lisboa 1955.

8.29.2012


PRÉ-HISTÓRIA DO FUTURO

O rapaz levantou-se, abandonando o leito confortável, e olhou em volta.
– Isto não é bonito – disse.
A sala tinha um aspeto bizarro. Muitos objetos partidos estavam amontoados a um canto. O rapaz franqueou a porta, após ter tateado um momento para encontrar o sistema de abertura.
A sala seguinte estava cheia de livros amontoados no chão. O rapaz pegou num, examinou-o e sorriu.
– É uma caixa que fala com os sinais dos deuses – concluiu.
Leu um pouco e não compreendeu grande coisa. Deitou fora aquele e pegou noutro, grande e pesado. Abriu, virou a primeira página e leu: «Dicionário universal enciclopédico. Edição 900 P-R». Depois, passou uma página branca. A página seguinte apresentava um magnífico A.
– A – disse o rapaz, passando o dedo pela letra.
Depois, mais abaixo leu:
– A, a. Primeira letra e primeira vogal do alfabeto humano. O A vem-nos do nosso antepassado homo sapiens terrestre, o animal mais evoluído do seu planeta nos tempos pré-venusianos.
O rapaz virou várias páginas e chegou à palavra alfabeto. Leu atentamente várias vezes, sentindo prazer em reconhecer, todos reunidos, os carateres de que tanto gostava. Depois observou o livro e deu uma alegre risada.
– O rapaz negro percebeu. Todas as coisas estão arrumadas como no alfabeto, primeiro A, depois B, depois C, até ao fim; depois entre A e B, primeiro Aa, depois Ab, depois Ac. E a seguir Aca, Acb, Acc... O rapaz negro compreendeu. Vai procurar o grupo dos sinais que se chama: deus.
«Deus – sentido próprio: superstição grosseira do animal "homo sapiens" preenchendo comodamente todas as falhas do seu saber pela existência de um ser invisível e perfeito, omnisciente, omnipotente, eterno, criador e senhor de todas as coisas. Certos animais de Marte acreditam ainda num Deus. Os Srrebs de Vénus acreditam em vários deuses (ver Srreo). Sentido figurado (familiar): chama-se deus a um personagem ridículo e ignorante que toma ares sapientes».
O rapaz negro abanou a cabeça.
– Estes sinais dizem coisas estranhas!
 
In STEFAN WUL, Pré-História do Futuro, tradução de Mário Henrique Leiria, coleção Argonauta, Edição «Livros do Brasil» Lisboa. Págs. 173/174 

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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