7.03.2011

É Preciso Descaramento!

"Babando sobre sórdida tigela
subtil mercúrio, em pílulas tomado,
jura o dorido, pálido soldado,
nunca mais ver a cara à tal donzela.

Mas, como fados zombam de cautela,
com bom capote, à choupa conquistado,
sobre duas muletas encostado,
se pôs a assobiar à porta dela.

Tal, ajoelhado ao vencedor banqueiro,
com mil votos formais, mas sem virtude,
jurou a paz este infeliz parceiro.

Chegam as horas: resistir não pude;
e da porta a que fui vim de dinheiro
como o soldado veio de saúde."


Nicolau Tolentino, poeta e mestre meninos português do século XVIII

Nunca ninguém imaginou que para fazer tão pouco fosse preciso gastar tanto, mas o popular aforismo judaico-cristão (e semítico) de que com a saúde não se poupa, ou que nela todo o gasto é um investimento, foi levado a um exagero tal que ultrapassou os limites do caricato para entrar nos condomínios do deplorável. Não só porque nesse enredo envolve cada português com 917 €, que é montante que lhe cabe pelo calote que não cometeu, embora tenha permitido que outros o cometessem pelas escolhas que na urna sucessivamente fez, eleições atrás de eleições sempre nos mesmos alternantes do convénio, mas também porque o dito Serviço Nacional de Saúde (SNS) só parece ser bom para quem não precisa dele. E que o digam aqueles que foram fazer operações à vista e ficaram cegos ou, anteriormente, os que por causa de uma transfusão de sangue bateram as botas. Os que entraram num hospital com uma unha encravada e trouxeram de lá um vírus fatal. Os que foram lá medir a pressão arterial e tiveram que recorrer às farmácias para verem esse "ato clínico" consumado.
Daí que muitos se interroguem, não sem razão, sobre onde é que o SNS desbaratou a verba que lhe coube dos sucessivos Orçamentos de Estado (OE) mais o acumulado correspondente ao "buraco" aberto em dívida de 2,7 mil milhões de €, se nem para medir a pressão arterial a uma pessoa serve? Gostava de conhecer as estatísticas, números e natureza dos atos clínicos praticados que justificam tal calote... Quantos carros topo de gama compraram e quantas vivendas apalaçadas fizeram os seus profissionais de “giro”, técnicos ou administrativos? Então, a primeira tranche da ajuda da Troika (1,75 mil milhões) não chega para cobrir a dívida da saúde portuguesa e fica tudo por isso mesmo, sem convocar os responsáveis pelo desmando à barra das responsabilidades?
Eu sei que isto é um país onde até os polícias conduzem sem carta, durante meio século, sem nada lhes acontecer, senão deixarem de girar na rua... Mas é preciso muito descaramento para branquear o atual status quo só porque não se quer melindrar a vaca sagrada da feitiçaria e dos curandeiros da tribo onde, ao que parece, existem pelo menos 1428 profissionais sem a escolaridade obrigatória, todos dias se depara, em média, com 134 queixas formais (reclamações), e a maioria dos conselhos de administração hospitalar não cumpre a Lei do Orçamento de Estado mantendo-se impune e alegremente a auferir o chorudo vencimento e em funções quase vitalícias. É claro que não faltará quem há de apontar o dedo aos políticos deste ou daquele partido, no poder ou na oposição, fazendo deles o bode expiatório desse rol de crimes observáveis diariamente (e à vista desarmada). Porém, de uma coisa podemos estar certos: a Assembleia da República e os políticos portugueses têm culpa de muita coisa inconcebível e vergonhosa que acontece neste país, mas desta vez não foram eles que meteram o montante em causa no bolso. Foram outros, ajudados pelos funcionários benquistos às administrações e direções várias, com quem tropeçamos dia a dia ou sempre que nos dirigimos aos Centros de Saúde e Hospitais da portugalidade corporativista do nosso contentamento. Haja decoro e respeitinho pela inteligência dos cidadãos deste país. Tentar virar o bico ao prego é passar um atestado de desinteligência a cada utente do SNS. É dar-lhe o antídoto certeiro para o inspirar numa revolta cujos contornos e resultados podem sair do controlo mínimo e desejável, pois para quem já perdeu tudo, nada o pode fazer refém. Nem a esperança de uma saúde melhor!

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