11.16.2010

A Crítica da Razão Suficiente


"E contra fatos tudo são argumentos. (...) Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens: (...) Quando o silêncio clareia é que se escutam os escuros presságios. (...) [Só] Os anjos é que vêem o que não se passa." – in O Último Voo do Flamingo, de Mia Couto.

Se à cultura cabe a crítica da natureza é, porém, a civilização quem está mais próxima e funcional, adaptada, se coadunada e em conformidade, quanto à execução prática dessa crítica, para o que deve contar sempre com a viva e vivaz oposição, frontal e inequívoca, da arte em geral, e de cada uma de todas as artes, em particular, sem exceção, incluindo as requentadas e recicladas pelas valências e potencialidades das novas tecnologias (TIC). A portugalidade já patinhou demais no lodeiro do lamechismo bem pensante, civilizado e requintado dos extremismos canónicos, esborratando-se e diluindo-se nos interesses e demandas templárias, que sob o pretexto de serem esses templos a pagar as contas da despesa corrente no mecenato da competição desestruturante, se outorgam como lídimas autoridades na determinação da estética, na escolha e definição dos conteúdos, na modalidade apelante, na delineação da forma e decisão sobre o tipo e qualidade dos materiais ou suportes, no entabular das estruturas, enfim, nas motivações e motivos, nas técnicas e efeitos limítrofes e colaterais, intrínsecos a essa coisa pública chamada cultura, enquanto conteúdo veicular da arte e nas artes, ao exporem-se alternativas da realidade (criticada). A literatura, a ficção, a poesia, não podem continuar a ser coutadas de pategos, ou atiradores aos patos, sem época de defeso nem contagem estatística de disparos. José Saramago podia não ter sido um grande e genial escritor, daqueles que tiram coelhos da cartola por dá cá essa verba, como afirmam pretender, desabafando, alguns eruditos de café, nas suas elevadas tertúlias de interpretar os títulos do Correio da Manhã, ao que parece tarefa altamente transcendental para os de verve acicatada e soletração esforçada, mas foi o melhor do seu tempo, breve como é óbvio, logo da sua geração, neste país de baptistas a quem inchou o p da sopa para melhor realçarem o seu desacordo quanto ao Acordo Ortográfico. Todavia, nem oito nem oitenta, que abusar do seu esplendor para estender a manta burguesa sobre a relva das vaidades numa feira de brocados, com documentários e brochuras, de enaltecimento umas, de petiscar as migalhinhas da fama, outras, não (com)prova absolutamente nada da excelência da sua obra e bondade do autor, nem acrescenta o quer que seja ao que já de ambos se sabe, ou merece ser conhecido, quanto às virtudes técnico-narrativas, ao universo intertextual, acompanhado ou não das fantásticas e maravilhosas companhas, desprendidas e abnegadas no outrismo missionário, nestas ou naquelas paragens, posições ou protagonismos, no cocuruto de um vulcão de latente eclosão, ou em calções de banho num mar de sargaços e sanguessugas, ainda que alguém suponha com isso criar leitores, aumentar pecúlios editoriais, estimular a leitura e combater o analfabetismo, injetar soro mental e cultural nesta civilizada prole de herdeiros do obscurantismo salazarista, com assento na tribuna popularucha da acentuada distinção tribal, a que soe chamar-se, classe média esclarecida e (recém)formada pelas novas oportunidades, maiores de vinte e três e demais recursos da ansiedade governativa para subir no ranking do desenvolvimento humano, esquecendo que tal sofreguidão cheira a gato com o rabo de fora, propícia a indispor os narizes sensíveis – e melindrados – do empinado balofo dos narcisos sem fundamento, proporcionando aos autoconvencidos da razão suficiente o peculiar cheiro a esturro, que angélicos, tanto almejaram notar ainda em vida do autor laureado com o Nobel, nascido na azinhaga da decantação dos discursos diretos.
O livro, que já não é o que era e ainda nem imagina que virá a ser, e nele, a ficção, a novela, a poesia, o ensaio, o teatro, o sermão, a epístola, o diário de bordo, o diário, o relato de viagem, a reportagem existencial, o recado, a crítica, a estampa soletrável ou o bilhete/cábula de memória, sendo contudo produtos culturais por excelência, e grau superlativo na capacidade de veicular conteúdos, está para a civilização como a palavra está para a cultura: sintetiza-a, reflete-a, aprofunda-a, liberta-a, torna-a evidente, fluente, plausível e indesmentível, reconhece-a e divulga-a, exemplifica-a e corrompe-a. Sobretudo quando nos serve o romance. Tal como sucede com O Último Voo do Flamingo, de Mia Couto, que nos abre as portas para a (civilizada) Tizangara, uma aldeia situada no profundo algures da moçambiquidade, com porto de escala na portugalidade fluente da pronúncia social, e política, onde apenas os fatos são sobrenaturais, contra os quais quaisquer argumentos são superiormente válidos, deixando tudo o resto, que é imenso, na arca da emoção que, como todos sabemos, é razão mais que suficiente para cometer a vida e a morte, o sentimento e a economia, a guerra e o desfrute, ainda que lhe pertença por lei nem herança, por conquista nem dádiva.
Obra de entretenimento linguístico, que explora o sketch e a anedota como canoa para saltar fora do ambiente social visado, distanciamento tradicional dos antropólogos e sociólogos, biólogos das humanidades, que gostam de viajar entre os pingos da chuva, contorcendo-se entre os riscos de água na observância resistente, reproduzindo-o com as salvaguardas usuais e concedidas aos que romperam o manto da desabilitação académica, não pretende emitir uma mensagem nem desocupar uma expectativa de socialização, porquanto o buraco que cresce e faz desaparecer as nações, vai desde a corrupção à ignorância supersticiosa, e esse submergir é tão consequente a um mundo civilizado mas de cultura pouco esclarecida, como a um mundo inculto mas de civilização avançada, sem intenção definida e eticamente positiva, independentemente de serem aves (flamingos) que empurram o tempo para que o dia de amanhã se verifique, ou os comboios suburbanos da madrugada nas grandes metrópoles. Porque o que é certo, é que esse dia só acontecerá, não pelas razões legítimas e cientificamente reconhecidas, mas sim por gestação fantástica de causa e efeitos, em que as causas são sempre razões suficientes e os efeitos fatalidades incontornáveis, o que é quanto baste para destruir o conceito de cultura, uma vez que ele não crítica a natureza e antes a subscreve, relatando-a, no mais profundo da crendice e superstição animal comum ao homem pouco (ou mal) formado.
É uma novela com a qual a gente se ri para nos esquecermos de quão importante seria lamentarmo-nos pelo espelhado nela. Ri para não chorar, cumprindo um fado que nos foi ligado e anexo com as caravelas que aportaram a tamanho país, onde as crianças não têm acesso a esta e demais obras de Mia Couto, porque as não podem comprar nem existem nas bibliotecas, escolares ou públicas, porque quem as fez, escreveu, inventou, deixou de ser seu dono mal as publicou, passando de imediato a serem elas propriedade/produto de uma indústria cultural marxistamente civilizada a quem dá muito jeito as mais-valias resultantes, para premiar o investimento aos sócios anónimos da sua assembleia de acionistas. É um exemplo, de como os autores literários continuam a andar com os sapatos nas mãos, para só os calçar quando em pose, na representação do algo que os notabiliza, para não desgastar nem sujar o seu luxo de civilizados, embora se descalcem imediatamente a seguir ao fim da encenação e da saída dos mass media. Ou das entidades oficiais.
Escrever, criar, usufruir da técnica e da cultura, é muito mais do que bater palminhas às existências, às civilizações, mesmo que se lhe empreste uma graciosa pantomina de bobo em corte abonada: é criticar o que a natureza e a cultura forjaram, espremer a civilização condensada, até estas gerarem o desenvolvimento que as oblitere, e em síntese, as negue, desmascarando-as tão impróprias para futuro como já o são de sobejo no presente. Principalmente porque não há de ser pela circunstância de alguns babuínos/beduínos continuarem a caçar flamingos, conforme gentileza documental da National Geographic, que o dia de amanhã acontecerá. Esse depende do Sol, que desde remotas e soterradas épocas, continua a chamar-se Arina. Tão certo como três mais dois serem cinco, e mais um seis, que a perfeição é um oito adormecido no horizonte, sob o lusco-fusco de violetas timbrados, esperando as estrelas que nos perseguem (e espreitam). E seria preciso outra razão? Não é esta suficientemente forte para querer apagar os buracos negros do firmamento da esperança? Experimentem!

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