3.05.2010

Rótulos!

"Numa várzea sobre que soluçava o mar, apascentava Europa a sua boiada branca. Ao sol eram de noite os seus cabelos, ao luar eram sóis os seus olhos."
Aquilino Ribeiro, in O Touro Através a Mitologia e a História, publicado na ILUSTRAÇÃOPORTUGUESA de 16.11.1908

Mal sabia eu que a diferença existente entre o às vezes ter uma coisa e o às vezes não ter essa mesma coisa, depende em absoluto da maneira como as pessoas nos vêem e da consideração que têm por nós, ou do rótulo que nos colaram (à revelia, e sem que nos conheçam suficientemente para o fazerem), porquanto afirmar que uma pessoa às vezes tem razão significa que, não obstante ser geralmente falha dessa razão, às vezes, quiçá de rara frequência, até evidencia alguma, o que, lógica e racionalmente, está inversamente proporcional ao às vezes não tem razão, considerando ser isso sinónimo de geralmente a ter, embora, pontualmente ou esporadicamente, a perca por isto ou por aquilo. Ora, como numa conversa recente descobri, o busílis reside precisamente em haver pessoas «capacitadas» para coisificar tudo, incluindo a razão, que põem numa balança e pesam como ao toucinho, matéria peganhenta de que Alá também não gostava, fazendo da razão uma fita de papel higiénico, com relevante picotado, a que assoam o seu monco intelectual sempre que querem emporcalhar a imagem de outrem, propondo como Arquimedes, que essa viscosidade derramada seja correspondente ao volume da inteligência mergulhada nos objectos do conhecimento, atribuindo à razão uma medida (alqueire) de propriedade, título honorário, diploma ou moeda, sujeita a flutuações cambiais consoante a excitação que as pessoas lhe provocam na pituitária dos corporativismos serôdios.
Metem a razão no cu... – perdão! –, no cocuruto das suas carreiras, e atribuem-lhe valor de bandeirola para limitar o quadradinho de cagança narcísica, qual campo de contenda e peleja onde esgrimirão o gosto deste e o não gosto daquele, como se isso fosse, da vida, o supra-sumo de suas excelsas e apaniguadas (e medíocres) existências, achando-se inclusive com sobejo mérito para avaliar os demais, essencialmente segundo a sua bitola, autoproclamando-se não só avaliadores, mestres e especialistas – na arte da má-fé e maledicência –, mas ainda, e igualmente (por habilitados e exímios), medida para a bondade alheia, para, lá do cume do seu império, açularem os cães da alma a quem não lhe teça loas dia sim, dia sim, lhe bata histéricas palminhas e apelide de pérolas preciosas as asneiras que proferem, quase sempre clichés velhos e gastos, ecos da outra senhora que experimentava o transe místico sob paixoneta assolapada pelo misógino Botas, sublimando a mais-valia dos provincianismos arcaicos e suburbanos, por cuja tacanhez, provincianismo e manifesta desconfiança (ou alienação) pela inteligência dos outros, nunca foram capazes de esconder a inveja (unhas) nos sapos que tiveram que engolir, sobretudo nos de mais recentes coaxares, em deriva das alterações climáticas, destruição da orla costeira nacional, cheias, intempéries e catástrofes, como a que aconteceu na Madeira, falecimento do modelo económico, subida galopante do défice e endividamento, insustentabilidade do sistema de segurança social, etc.
Pois bem, vamos então acertar isto, de uma vez por todas: jamais pretendi ter razão, fosse no que fosse, e apenas por tê-la, vendo nela um cavalo de batalha, da qual, em manifesta vantagem argumentativa poderia colher louros, prosperando com o inegável abespinhamento dos outros, lucrando privilégios com o empecilho moral e intelectual da razão, nem me ative a racionalizar quando podia aprofundar esta ou aquela temática mais polémica, portanto, era conveniente que os detentores da verdade e da sensatez, da imaculada ventura que é olhar os demais para se esconderem de si mesmos, se deixassem de escandalizar com o facto de haver alguém que me considere poeta, quando faço poesia, opinion maker quando gizo crónicas, crítico quando teço críticas, escritor quando desenrolo enredos, (e-)leitor quando me envolvo em comunidades/grupos de leitura, político quando me candidato a eleições, ecologista se me insurjo contra a insustentabilidade social, ambiental, económica, territorial e humana, democrata quando defendo a cidadania em vez do corporativismo, a participação em lugar da representatividade – porque se o faço, é porque sou humano, responsável e consciente, no usufruto das liberdades, direitos e garantias que a Constituição Portuguesa me confere, e não mais um touro branco do rebanho de bestas para quem a benção do almocreve-mor é quase uma dádiva divina. Que prefiro às vezes não ter razão, a permitir que me colem os rótulos que melhor convenham a quem ostraciza mas diz que tolera, diminui mas argumenta, que o não faz intencionalmente, mas apenas repete uma maneira de dizer. Porque o não é, mas uma maneira de difamar. De amolar o próximo, de apoucar a sua inteligência. Aliás, se são assim tão bons, tão competentes e tão dignos, porque é que Portugal está como está, se foram sempre quem superintendeu aos seus destinos?
Limpem a vossa razão à parede, que esse será o grafite rupestre da magnanimidade racional que tão bem executaram enquanto puderam. A herança que os vossos filhos e os filhos dos demais, vão ter carregar, e sofrer, vida fora. E parabéns! (Já agora...)

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