VISITA INTERROMPIDA
«Onde ‘tá o haxixe?» Perguntou Acácio. «E as revistas porno?...»
«Estão a-í.» Respondeu Diana, sem levantar os olhos da tela em que estava a pintar, ajoelhada na alcatifa, e com ela sobre a mesinha de vidro de entre os sofás, como se esta fosse uma atrapalhação, um separador decorativo, um obstáculo no espaço destinado ao descanso.
«Aí é onde?» Insistiu o outro. «Não os vejo.»
«Por baixo da televisão», esclareceu ela.
E lá estavam. O Playboy, A Photo, A Sensual e A Revelação. Acácio pegou-lhes enfastiado, tal como ao invólucro de prata do maço de tabaco que continha e haxe, dirigindo-se para a casa de banho. Entrou. Fechou-se por dentro. E ouviu-se o clic do trinco.
Decorrida uma hora, quando reapareceu, a golfada de ar fumoso com cheiro a queimada, antecedeu-o, evoluindo na sala até às narinas da princesa. De nome próprio Angélica, mas que nunca usava o dito lá por casa. Diana, quando falava de si para si, na intimidade da masturbação... E Princesa, no casal, no convívio do lar. Até para os de fora, se se mantinham com familiaridade. Contudo, ambos gostavam superiormente do título nobiliárquico; só por coisas e princípios, mais nada.
Ela reergueu-se, com as mãos nos quadris. Esticou-se, ginasticou o pescoço, rolando-o e balançando-o sobre os ombros, dando duas ou três voltas com a cabeça, para cada lado, primeiro no sentido dos ponteiros do relógio, depois ao contrário, e segurou a pintura húmida pelos dois cantos superiores. Estendeu os braços à altura da cabeça, e quedou-se a contemplá-la...
«Hum-hum!...», fez então, com a moleira para baixo e para cima, em ar entendido. E de apreço.
«Que merda é essa» perguntou-lhe ele. «Não se parece com nada.»
«Adivinhaste», sentenciou. «Foi exactamente isso que quis fazer: uma merda que se não parecesse com nada. Nem com merda, inclusive.»
Acácio fisgou-a de soslaio, desconfiado. Estava a estranhá-la. Normalmente afinava ou melindrava-se. Especialmente quando ele fazia charros sem os partilhar com ela. Todavia, na altura, fora simplesmente seca e precisa.
“É uma fase”, pensou ele. “Talvez seja por lhe estar a aparecer o período… S.P.M!”
E recostou-se no sofá, por detrás dela, de pernas abertas, cinto desabotoado e braguilha meio aberta. Apeteceu-lhe. Contudo, retraiu-se. Era um pressentimento... de que os intentos não lhe iriam ser facilitados, nem compreendidos. Tinha dias!
Pela janela fronteira, através da vidraça suja de fuligem, via Casal Parado, na encosta da elevação que cumeava na carcaça dos dois moinhos desactivados e a Serra de Todo O Sempre.
“Aquela já o tinha feito feliz das mais diversas e variadas maneiras”, recordou ele, esfregando as mãos uma na outra, em fricção acelerada. Nos seus trinta anos, não tinha deixado os créditos por corpo alheio. A bem dizer. Agora, sabia-se, a novidade esmorecera, mas ficara uma experiência bastante recompensadora e a que podia recorrer quando lhe falhasse o ímpeto. Não iam com pressas nem em impulsos repentinos, mas, esporadicamente, ainda não tinham tempo de chegar ao quarto. Era ali mesmo, dado que os vizinhos próximos estavam demasiado afastados para os incomodarem com a sua presença, ou receio de serem vistos por estes.
Respirou fundo. Angélica içou-se, e Diana segurando a pintura, foi depô-la no cavalete, junto à janela. Envergava uma das camisas dele, de flanela, em xadrez de vermelho e azul, e cuequinhas brancas, sem mais nada. As pernas eram escorreitas, mas bem torneadas, e as bochechas das nádegas, alçadas e firmes, bem afastadas uma da outra, deixavam visionar um papinho de rola deveras avolumado pelo tufo de pêlos encaracolados, não obstante o nylon das calcinhas.
“Bem boa!...”, reconsiderou. “Bem boa!...” E empertigou-se para trás, recostando-se, dedos a enclavinharem-se sobre a napa do sofá, como que a conter aquela sensação de “antes que...”
Então ela saiu da sala. E ele ficou a olhar lá para fora, sem ver coisa nenhuma.
* * * * * *
Quando a princesa regressou, envergando uma toilette própria para sair, e dela, Acácio ainda se não havia mexido, nem um dedo sequer. Consequentemente, observou-a com minúcia. Surpreso, embora que não deslumbrado. Saia de flanela de lã, plissada à frente, verde-musgo, meias de lycra em tom de carne, sapatos de salto alto, pretos, blusa de seda creme com laçarote no colarinho e folhos de tule nas mangas, carteira de pele genuína na mão esquerda e porta-chaves na direita, a tilintarem, trazia ela.
«Já volto» informou, com frugalidade e contumácia. E bateu com a porta.
Acácio não tugiu nem mugiu. Nem teria tempo para o fazer.
Nunca outrora tal tinha acontecido, mas isso também não queria dizer nicles, batatóides. Onde poderia ela ir? Era lá com ela! Deixá-la. E conservou-se a revisionar-lhe os cabelos desalinhados, castanhos palha, exactamente iguais aos da púbis, talvez que um pouquinho mais escurecidos... E os olhos também castanhos, de avelã salpicada a verde-musgo. O rosto miúdo, e o tronco felino, de seios achatados, como duas metades separadas de pequena meloa melosa e melada, suculenta e promissora.
Só que ela não voltou nesse dia, nem no outro, nem nos seguintes; jamais. Desapareceu. Sumiu-se. Eclipsou-se. Deu de frosques para o definitivo sem volta.
E ele restou por ali, fazendo todos os dias o mesmo que fizera durante os dias em que ela não (ainda não) vivia com ele: escrevendo, vendo revistas porno, fumando porros, ouvindo música, olhando para fora através da janela; e cozinhando, fazendo compras ou esperando que o significativamente interessante acontecesse, sentado naquele sofá em que precisamente agora esperava que ela retornasse. Abrisse a porta e dissesse: “Aqui estou. Que estavas a dizer?” Mas esse quadro nunca se realizou. E esse dia nunca aconteceu.
Todavia o quadro continuava ali, lá estava no cavalete, significando nada, representando o zero absoluto, lembrando-lhe o vazio. Aliás, como o tempo, que partia para repartir-se sem, de maneira nenhuma, materializar-se em algo diferente daquela sensação de esvaimento (e ocadura). Que persiste. Persiste. E persiste.
Fixou-o melhor, intensamente, até lhe doer a vista. “Afinal, tinha talento...”, cogitou para consigo. “Provavelmente foi aí que a coisa se deu: eu nunca lho reconheci.” Ergueu-se. E a porta bateu... Igualmente. Talvez também a uma conclusão, e decidisse partir. Talvez não, quem sabe, e fosse apenas mais um acesso repentino, um impulso momentâneo, logo passageiro, uma febre de movimento. Talvez.
E sabê-lo? Fora visitado um dia, da mesma forma que todos o somos, alguma vez o fomos, recebendo a visita, quase inesperada, de alguém que nos quer bem. Mas essa visita partira; apenas isso. Daí que talvez também lhe chegasse a intenção de uma véspera qualquer. Mesmo, e até de voar, podia ela ser!
Convite para partilhar caminhos de leitura e uma abertura para os mundos virtuais e virtuososos da escrita sem rede nem receios de censura. Ah, e não esquecer que os e-mails de serviço são osverdes.ptg@gmail.com ou castanhoster@gmail.com FORÇA!!! Digam de vossa justiça!
8.25.2009
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