6.20.2008


O Vício


Se tanto desconfio, fui dado, desde muito cedo, como um caso perdido... E, pese embora, as partidas que a vida me pregou, de nenhuma emenda me valeram. Malhas que o destino tece, se dirá. Outros, sobremaneira compadecidos com a desgraça alheia e mais tolerantes, que no céu estaria escrito... Mas, a bem dizer, o que é certo, é que se coisa se vaticinou grave, muito pior foi o resultado no que deu.
Ao princípio, do mal o menos!, ainda me apodaram de "mentira fresca", quando ao serão, sob o luar de Agosto, no pátio do monte, depois do jantar, se partilhava a melancia, e se afincava o dente no galo suculento, que era quando me questionavam sobre o que durante o dia fizera, ou me acontecera, preocupações legítimas da família, tios e avós, que viam nas minhas demoras, quando no cumprimento dos recados entre a horta e o forno, ou deambulações pelas veredas mal frequentadas do caminho, já um prenúncio de mente transviada, e eu lhes afiançava que vira um lagarto azul nos morouços da Tapadinha ou uma cobra de camisa rameada e asas amarelas nas regadeiras do feijão de ampa. "Oh, pá... Pode lá ser!", admiravam-se. "Isso foi mas é, algum saco de plástico esquecido, que mexeu com o vento", abreviavam apaziguadores. Eu que não, que não, e amuava com o reparo. Insistia mesmo, que tinham sido cobras e lagartos, sim senhora. E escoiceava, até que ouvisse um "pronto, pronto, 'tá bem", para parar com banzé.
Passados dois ou três verões, uma vez que as visões não amainavam, deixaram de me perguntar o que é que eu tinha visto e feito durante o dia, e esperavam paulatinamente, mas circunspectos e com ar de caso, que entre o cuspir das pevides da quarta talhada do encarniçado miolo, eu lhes relatasse a enviesada quão usual peta. Creio que mudei de bichos e evoluí na criação, para aves, mais coisa menos coisas, porquanto até já a mim fazia espécie haver tantos répteis travestidos e com aptidões histriónicas... E se deixaram de ser sardaniscas em traje de gala, passaram a ser corvos com indumentária canarinha. O certo é que perderam também o hábito de comentar-me as descobertas, e no fim apenas diziam "esta, é que é fresca!", adiantando "a melancia, claro...", caso eu desse sinal de me ter apercebido que estavam a pôr dúvidas ou suspeitar da reportagem.
Ora, um belo dia, não me lembro com quem nem quando, suponho que haveria visitas, talvez de parentes distantes, quase a pôr os pés no botaréu da entrada, notei que dentro de casa, além de aí haver mais gente que do costume, se conversava, e se conversava acerca de mim. Falava-se da escola, dos desaguisados quotidianos, da minha apetência para a vadiagem e fraca prontidão no cumprir das incumbências dos adultos. E referia-se inclusive a manifesta e reiterada aptidão para a mentirinha. Como ninguém dera por mim, adiei a entrada em cena, e fui remoer sobre a novidade, em local afastado. Aprendera a ler, a escrever, a contar, mas sentia-me defraudado pelas conjecturas ouvidas. Conspiração, era o que era. Meti-me de brios e alterei o comportamento. A partir de então, não voltaria a abrir o bico, acerca do meu relacionamento com a fantasia do mundo. Via o que via, mas guardá-lo-ia só para mim. E dito e feito.
Mais tarde, quando me vieram parar perto alguns livros de ficção, pude constatar que essas invenções não eram coisa unicamente minha, e passei a devorar quantos me passassem à mão de semear. Que neste caso, seria colher, para ser melhor dito. Com tal empenho e dedicação, que logo houve quem, fazendo jus à sua alta erudição, me diagnosticasse como "leitor compulsivo". Mas para os meus meios, essas manigâncias das pulsões, impulsões e compulsões, andavam por freudismos de pouca a monta, e aquilo que se decretou foi que tinha contraído "o vício da leitura", o que, como demência maníaca, ainda era pior que a da mentira. Mentir, qualquer um mente, havendo mesmo quem o faça por bem... Agora ler, isso é terrível, pois quem o fizer é capaz de tudo. E portanto, sendo diminuto já o crédito tido, perdera definitivamente o que restava. Estava perdido... Nomeadamente para muitos professores do ensino oficial e oficializado, que consideravam que os compêndios de fiscalidade e estenografia é que mereceriam todas as bíblicas atenções, se se quisesse andar no mundo com prestigiada honradez, e sem envergonhar a família.
Todavia, aos trancos e tamancos, o defeito avolumou-se. E o golpe, com a propalação do advento, fora duro, mas como em qualquer família com pergaminhos e de apelido que se preze, se de grande e duradoira gesta, fica bem ter um porra-louca nela, até não se abalou seriamente. Feriu, coçou-se, mas não traumatizou. Enfim, eriça-se, contudo pega-se a afronta de caras e segue-se frente (que atrás vem gente). Apenas com um senão, e que veio destemperar os cânones, esgotar a paciência...
Por alturas lectivas do secundário, o jornal A Rabeca publicou em letra gótica, tipo de coisa esmerada, e com cercadura amaricada, um poema meu. Assinado e tudo. E a ousadia soou. Esvoaçou que nem boato, e se folhas leva-as o vento, como dizem, este rodopiou, enroscou de marosca pensada, calhando com a má ideia a alqueivar o tino, e toma: foi cair a obradura nas mãos do meu avô.
«Eh pá, que é isto, meu Deus?!...» Não queria crer. Lançou os olhos ao céu, talvez em prece, rogando entendimento e clareza, mas não havia dúvida, vira bem o nome, atenteara a peça, a negrura da tinta. Tudo. Com a mão livre tirou o chapéu e coçou o couro cabeludo, e com o mesmo membro, a aba do feltro entalada entre o indicador e o polegar, com o mindinho e o anelar a esfregar o toutiço, arrefinfou-lhe a coçadela mais uma vez, duas vezes, três, porém sem o mínimo alívio. Custava-lhe a crer no que via. Anuviou-se-lhe o discernimento, entaramelou-se-lhe a língua, embargou-se-lhe a alma num aperto de fogo. «Pode lá ser! Chiça, não merecia isto... Não merecia! Não merecia!" E toca de rumar ao lar, na busca de consolo, a arrastar as botas, que lhe pesariam que nem grilhetas.
Nele, a minha avó, à volta das caçarolas e panelas de barro, assustou-se mal o viu, pelo semblante de abatido, lívido e quase defunto, que notou no marido, sempre de tão boas cores, compleição e galharda figura. «Oh, homem, que se passa homem?», afligiu-se ela.
«Ai mulher», respondeu este, dando tempo ao tempo, para recuperar o fôlego. «Olha pra isto, mulher... Olha pra isto, e diz-me que não é verdade. Diz-me que não é o que estou a pensar!»
E ela olhou. Viu. Voltar a olhar. E reviu. Mas, ao contrário, de desmentir, confirmou. «É... É um poema do gaiato. E depois?»
Então, não aguentou mais, abateu-se sobre a cadeira de bunho, junto à tulha das cinzas, esbracejou, tentando falar, mas que não saiu de pronto, até que finalmente arremeteu aos solavancos da desgraça, concluindo: «Mas tu vês mulher..., a nossa maldição...? Já tinha um vício, que era do piorio... o da leitura. E agora tem outro: o da escrita. E logo poesia! Poesia... Que hão-de dizer, por aí?... » E prostrou-se, definitivamente. Fulminado pela desgraça, que nem os Definitivos conseguiram apaziguar. E durante dias, até o caldo lhe soube mal. Hoje, dou-lhe razão. Provavelmente, há maldições que nenhuma família merece. Sobretudo se vícios destes, que não matam tão lentamente, como seria de esperar!

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