O Vício
Se tanto desconfio, fui dado, desde muito cedo, como um caso perdido... E, pese embora, as partidas que a vida me pregou, de nenhuma emenda me valeram. Malhas que o destino tece, se dirá. Outros, sobremaneira compadecidos com a desgraça alheia e mais tolerantes, que no céu estaria escrito... Mas, a bem dizer, o que é certo, é que se coisa se vaticinou grave, muito pior foi o resultado no que deu.
Ao princípio, do mal o menos!, ainda me apodaram de "mentira fresca", quando ao serão, sob o luar de Agosto, no pátio do monte, depois do jantar, se partilhava a melancia, e se afincava o dente no galo suculento, que era quando me questionavam sobre o que durante o dia fizera, ou me acontecera, preocupações legítimas da família, tios e avós, que viam nas minhas demoras, quando no cumprimento dos recados entre a horta e o forno, ou deambulações pelas veredas mal frequentadas do caminho, já um prenúncio de mente transviada, e eu lhes afiançava que vira um lagarto azul nos morouços da Tapadinha ou uma cobra de camisa rameada e asas amarelas nas regadeiras do feijão de ampa. "Oh, pá... Pode lá ser!", admiravam-se. "Isso foi mas é, algum saco de plástico esquecido, que mexeu com o vento", abreviavam apaziguadores. Eu que não, que não, e amuava com o reparo. Insistia mesmo, que tinham sido cobras e lagartos, sim senhora. E escoiceava, até que ouvisse um "pronto, pronto, 'tá bem", para parar com banzé.
Passados dois ou três verões, uma vez que as visões não amainavam, deixaram de me perguntar o que é que eu tinha visto e feito durante o dia, e esperavam paulatinamente, mas circunspectos e com ar de caso, que entre o cuspir das pevides da quarta talhada do encarniçado miolo, eu lhes relatasse a enviesada quão usual peta. Creio que mudei de bichos e evoluí na criação, para aves, mais coisa menos coisas, porquanto até já a mim fazia espécie haver tantos répteis travestidos e com aptidões histriónicas... E se deixaram de ser sardaniscas em traje de gala, passaram a ser corvos com indumentária canarinha. O certo é que perderam também o hábito de comentar-me as descobertas, e no fim apenas diziam "esta, é que é fresca!", adiantando "a melancia, claro...", caso eu desse sinal de me ter apercebido que estavam a pôr dúvidas ou suspeitar da reportagem.
Ora, um belo dia, não me lembro com quem nem quando, suponho que haveria visitas, talvez de parentes distantes, quase a pôr os pés no botaréu da entrada, notei que dentro de casa, além de aí haver mais gente que do costume, se conversava, e se conversava acerca de mim. Falava-se da escola, dos desaguisados quotidianos, da minha apetência para a vadiagem e fraca prontidão no cumprir das incumbências dos adultos. E referia-se inclusive a manifesta e reiterada aptidão para a mentirinha. Como ninguém dera por mim, adiei a entrada em cena, e fui remoer sobre a novidade, em local afastado. Aprendera a ler, a escrever, a contar, mas sentia-me defraudado pelas conjecturas ouvidas. Conspiração, era o que era. Meti-me de brios e alterei o comportamento. A partir de então, não voltaria a abrir o bico, acerca do meu relacionamento com a fantasia do mundo. Via o que via, mas guardá-lo-ia só para mim. E dito e feito.
Mais tarde, quando me vieram parar perto alguns livros de ficção, pude constatar que essas invenções não eram coisa unicamente minha, e passei a devorar quantos me passassem à mão de semear. Que neste caso, seria colher, para ser melhor dito. Com tal empenho e dedicação, que logo houve quem, fazendo jus à sua alta erudição, me diagnosticasse como "leitor compulsivo". Mas para os meus meios, essas manigâncias das pulsões, impulsões e compulsões, andavam por freudismos de pouca a monta, e aquilo que se decretou foi que tinha contraído "o vício da leitura", o que, como demência maníaca, ainda era pior que a da mentira. Mentir, qualquer um mente, havendo mesmo quem o faça por bem... Agora ler, isso é terrível, pois quem o fizer é capaz de tudo. E portanto, sendo diminuto já o crédito tido, perdera definitivamente o que restava. Estava perdido... Nomeadamente para muitos professores do ensino oficial e oficializado, que consideravam que os compêndios de fiscalidade e estenografia é que mereceriam todas as bíblicas atenções, se se quisesse andar no mundo com prestigiada honradez, e sem envergonhar a família.
Todavia, aos trancos e tamancos, o defeito avolumou-se. E o golpe, com a propalação do advento, fora duro, mas como em qualquer família com pergaminhos e de apelido que se preze, se de grande e duradoira gesta, fica bem ter um porra-louca nela, até não se abalou seriamente. Feriu, coçou-se, mas não traumatizou. Enfim, eriça-se, contudo pega-se a afronta de caras e segue-se frente (que atrás vem gente). Apenas com um senão, e que veio destemperar os cânones, esgotar a paciência...
Por alturas lectivas do secundário, o jornal A Rabeca publicou em letra gótica, tipo de coisa esmerada, e com cercadura amaricada, um poema meu. Assinado e tudo. E a ousadia soou. Esvoaçou que nem boato, e se folhas leva-as o vento, como dizem, este rodopiou, enroscou de marosca pensada, calhando com a má ideia a alqueivar o tino, e toma: foi cair a obradura nas mãos do meu avô.
«Eh pá, que é isto, meu Deus?!...» Não queria crer. Lançou os olhos ao céu, talvez em prece, rogando entendimento e clareza, mas não havia dúvida, vira bem o nome, atenteara a peça, a negrura da tinta. Tudo. Com a mão livre tirou o chapéu e coçou o couro cabeludo, e com o mesmo membro, a aba do feltro entalada entre o indicador e o polegar, com o mindinho e o anelar a esfregar o toutiço, arrefinfou-lhe a coçadela mais uma vez, duas vezes, três, porém sem o mínimo alívio. Custava-lhe a crer no que via. Anuviou-se-lhe o discernimento, entaramelou-se-lhe a língua, embargou-se-lhe a alma num aperto de fogo. «Pode lá ser! Chiça, não merecia isto... Não merecia! Não merecia!" E toca de rumar ao lar, na busca de consolo, a arrastar as botas, que lhe pesariam que nem grilhetas.
Nele, a minha avó, à volta das caçarolas e panelas de barro, assustou-se mal o viu, pelo semblante de abatido, lívido e quase defunto, que notou no marido, sempre de tão boas cores, compleição e galharda figura. «Oh, homem, que se passa homem?», afligiu-se ela.
«Ai mulher», respondeu este, dando tempo ao tempo, para recuperar o fôlego. «Olha pra isto, mulher... Olha pra isto, e diz-me que não é verdade. Diz-me que não é o que estou a pensar!»
E ela olhou. Viu. Voltar a olhar. E reviu. Mas, ao contrário, de desmentir, confirmou. «É... É um poema do gaiato. E depois?»
Então, não aguentou mais, abateu-se sobre a cadeira de bunho, junto à tulha das cinzas, esbracejou, tentando falar, mas que não saiu de pronto, até que finalmente arremeteu aos solavancos da desgraça, concluindo: «Mas tu vês mulher..., a nossa maldição...? Já tinha um vício, que era do piorio... o da leitura. E agora tem outro: o da escrita. E logo poesia! Poesia... Que hão-de dizer, por aí?... » E prostrou-se, definitivamente. Fulminado pela desgraça, que nem os Definitivos conseguiram apaziguar. E durante dias, até o caldo lhe soube mal. Hoje, dou-lhe razão. Provavelmente, há maldições que nenhuma família merece. Sobretudo se vícios destes, que não matam tão lentamente, como seria de esperar!
Se tanto desconfio, fui dado, desde muito cedo, como um caso perdido... E, pese embora, as partidas que a vida me pregou, de nenhuma emenda me valeram. Malhas que o destino tece, se dirá. Outros, sobremaneira compadecidos com a desgraça alheia e mais tolerantes, que no céu estaria escrito... Mas, a bem dizer, o que é certo, é que se coisa se vaticinou grave, muito pior foi o resultado no que deu.
Ao princípio, do mal o menos!, ainda me apodaram de "mentira fresca", quando ao serão, sob o luar de Agosto, no pátio do monte, depois do jantar, se partilhava a melancia, e se afincava o dente no galo suculento, que era quando me questionavam sobre o que durante o dia fizera, ou me acontecera, preocupações legítimas da família, tios e avós, que viam nas minhas demoras, quando no cumprimento dos recados entre a horta e o forno, ou deambulações pelas veredas mal frequentadas do caminho, já um prenúncio de mente transviada, e eu lhes afiançava que vira um lagarto azul nos morouços da Tapadinha ou uma cobra de camisa rameada e asas amarelas nas regadeiras do feijão de ampa. "Oh, pá... Pode lá ser!", admiravam-se. "Isso foi mas é, algum saco de plástico esquecido, que mexeu com o vento", abreviavam apaziguadores. Eu que não, que não, e amuava com o reparo. Insistia mesmo, que tinham sido cobras e lagartos, sim senhora. E escoiceava, até que ouvisse um "pronto, pronto, 'tá bem", para parar com banzé.
Passados dois ou três verões, uma vez que as visões não amainavam, deixaram de me perguntar o que é que eu tinha visto e feito durante o dia, e esperavam paulatinamente, mas circunspectos e com ar de caso, que entre o cuspir das pevides da quarta talhada do encarniçado miolo, eu lhes relatasse a enviesada quão usual peta. Creio que mudei de bichos e evoluí na criação, para aves, mais coisa menos coisas, porquanto até já a mim fazia espécie haver tantos répteis travestidos e com aptidões histriónicas... E se deixaram de ser sardaniscas em traje de gala, passaram a ser corvos com indumentária canarinha. O certo é que perderam também o hábito de comentar-me as descobertas, e no fim apenas diziam "esta, é que é fresca!", adiantando "a melancia, claro...", caso eu desse sinal de me ter apercebido que estavam a pôr dúvidas ou suspeitar da reportagem.
Ora, um belo dia, não me lembro com quem nem quando, suponho que haveria visitas, talvez de parentes distantes, quase a pôr os pés no botaréu da entrada, notei que dentro de casa, além de aí haver mais gente que do costume, se conversava, e se conversava acerca de mim. Falava-se da escola, dos desaguisados quotidianos, da minha apetência para a vadiagem e fraca prontidão no cumprir das incumbências dos adultos. E referia-se inclusive a manifesta e reiterada aptidão para a mentirinha. Como ninguém dera por mim, adiei a entrada em cena, e fui remoer sobre a novidade, em local afastado. Aprendera a ler, a escrever, a contar, mas sentia-me defraudado pelas conjecturas ouvidas. Conspiração, era o que era. Meti-me de brios e alterei o comportamento. A partir de então, não voltaria a abrir o bico, acerca do meu relacionamento com a fantasia do mundo. Via o que via, mas guardá-lo-ia só para mim. E dito e feito.
Mais tarde, quando me vieram parar perto alguns livros de ficção, pude constatar que essas invenções não eram coisa unicamente minha, e passei a devorar quantos me passassem à mão de semear. Que neste caso, seria colher, para ser melhor dito. Com tal empenho e dedicação, que logo houve quem, fazendo jus à sua alta erudição, me diagnosticasse como "leitor compulsivo". Mas para os meus meios, essas manigâncias das pulsões, impulsões e compulsões, andavam por freudismos de pouca a monta, e aquilo que se decretou foi que tinha contraído "o vício da leitura", o que, como demência maníaca, ainda era pior que a da mentira. Mentir, qualquer um mente, havendo mesmo quem o faça por bem... Agora ler, isso é terrível, pois quem o fizer é capaz de tudo. E portanto, sendo diminuto já o crédito tido, perdera definitivamente o que restava. Estava perdido... Nomeadamente para muitos professores do ensino oficial e oficializado, que consideravam que os compêndios de fiscalidade e estenografia é que mereceriam todas as bíblicas atenções, se se quisesse andar no mundo com prestigiada honradez, e sem envergonhar a família.
Todavia, aos trancos e tamancos, o defeito avolumou-se. E o golpe, com a propalação do advento, fora duro, mas como em qualquer família com pergaminhos e de apelido que se preze, se de grande e duradoira gesta, fica bem ter um porra-louca nela, até não se abalou seriamente. Feriu, coçou-se, mas não traumatizou. Enfim, eriça-se, contudo pega-se a afronta de caras e segue-se frente (que atrás vem gente). Apenas com um senão, e que veio destemperar os cânones, esgotar a paciência...
Por alturas lectivas do secundário, o jornal A Rabeca publicou em letra gótica, tipo de coisa esmerada, e com cercadura amaricada, um poema meu. Assinado e tudo. E a ousadia soou. Esvoaçou que nem boato, e se folhas leva-as o vento, como dizem, este rodopiou, enroscou de marosca pensada, calhando com a má ideia a alqueivar o tino, e toma: foi cair a obradura nas mãos do meu avô.
«Eh pá, que é isto, meu Deus?!...» Não queria crer. Lançou os olhos ao céu, talvez em prece, rogando entendimento e clareza, mas não havia dúvida, vira bem o nome, atenteara a peça, a negrura da tinta. Tudo. Com a mão livre tirou o chapéu e coçou o couro cabeludo, e com o mesmo membro, a aba do feltro entalada entre o indicador e o polegar, com o mindinho e o anelar a esfregar o toutiço, arrefinfou-lhe a coçadela mais uma vez, duas vezes, três, porém sem o mínimo alívio. Custava-lhe a crer no que via. Anuviou-se-lhe o discernimento, entaramelou-se-lhe a língua, embargou-se-lhe a alma num aperto de fogo. «Pode lá ser! Chiça, não merecia isto... Não merecia! Não merecia!" E toca de rumar ao lar, na busca de consolo, a arrastar as botas, que lhe pesariam que nem grilhetas.
Nele, a minha avó, à volta das caçarolas e panelas de barro, assustou-se mal o viu, pelo semblante de abatido, lívido e quase defunto, que notou no marido, sempre de tão boas cores, compleição e galharda figura. «Oh, homem, que se passa homem?», afligiu-se ela.
«Ai mulher», respondeu este, dando tempo ao tempo, para recuperar o fôlego. «Olha pra isto, mulher... Olha pra isto, e diz-me que não é verdade. Diz-me que não é o que estou a pensar!»
E ela olhou. Viu. Voltar a olhar. E reviu. Mas, ao contrário, de desmentir, confirmou. «É... É um poema do gaiato. E depois?»
Então, não aguentou mais, abateu-se sobre a cadeira de bunho, junto à tulha das cinzas, esbracejou, tentando falar, mas que não saiu de pronto, até que finalmente arremeteu aos solavancos da desgraça, concluindo: «Mas tu vês mulher..., a nossa maldição...? Já tinha um vício, que era do piorio... o da leitura. E agora tem outro: o da escrita. E logo poesia! Poesia... Que hão-de dizer, por aí?... » E prostrou-se, definitivamente. Fulminado pela desgraça, que nem os Definitivos conseguiram apaziguar. E durante dias, até o caldo lhe soube mal. Hoje, dou-lhe razão. Provavelmente, há maldições que nenhuma família merece. Sobretudo se vícios destes, que não matam tão lentamente, como seria de esperar!
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