ETERNIDADE
Não, não há maior e sublime poema
Que as ancas da minha companheira
Que são fortes e firmes e seguras
E fazem o mundo parecer um templo
Onde cada casa é um púbis em flor.
Não, não há metáfora mais certeira
Que as suas coxas tenazes e duras
Que do querer são fé de férreo exemplo
Quando me alicatam com febril fervor
E me prendem se expludo ao dar-lhe amor.
Não, não há maior enredo nem torpedo
Que mais me rasgue, abata, dilacere
Que o silêncio apertado gritado em segredo
Que o seu convulso estertor desfere
Quando na noite da noite vencemos o medo
E nos exilamos no degredo de fazer amor.
Não, não há... E quem puder que mo prove
Com prova riscada em matemática a preceito
Que a eternidade não é aquela astronave
Com que a abraço e lhe desfaleço sobre o peito!
Convite para partilhar caminhos de leitura e uma abertura para os mundos virtuais e virtuososos da escrita sem rede nem receios de censura. Ah, e não esquecer que os e-mails de serviço são osverdes.ptg@gmail.com ou castanhoster@gmail.com FORÇA!!! Digam de vossa justiça!
8.27.2004
8.25.2004
O ENGATE
Para fazer uma boa aproximação
Há que ter por cada 100 quilos 76% de água:
20% de postura sólida;
10 de cheiros fluidos;
20 de olhares líquidos;
10 de vozes melosas;
15 de toques polidos;
12 de mentiras raladas;
1 de gestos rapaces;
2 de tiques infantilóides;
E uma boa pitada de sentido de humor.
O restante da percentagem paciência em flor.
Após juntar tudo, leva-se à discoteca mais próxima
Onde ferverá em música branda durante uma hora, no mínimo.
Será de ter em atenção que depois de cozido
Se acrescentará um caldo de uva etílica
E deixar-se-á esfriar com bastantes cigarros
Pondo-lhe as beatas em torno.
Batôn.
Desodorizante em rodelas, pelo que é melhor
Se for stick, recortes de revistas da moda
E algumas frutas secas - por exemplo, artes.
Serve-se em prato único.
Aconselha-se, para acompanhar algumas pílulas
mas de preferência anticoncepcionais se não for preciso viagrar
Com o tempo e o modo.
Para fazer uma boa aproximação
Há que ter por cada 100 quilos 76% de água:
20% de postura sólida;
10 de cheiros fluidos;
20 de olhares líquidos;
10 de vozes melosas;
15 de toques polidos;
12 de mentiras raladas;
1 de gestos rapaces;
2 de tiques infantilóides;
E uma boa pitada de sentido de humor.
O restante da percentagem paciência em flor.
Após juntar tudo, leva-se à discoteca mais próxima
Onde ferverá em música branda durante uma hora, no mínimo.
Será de ter em atenção que depois de cozido
Se acrescentará um caldo de uva etílica
E deixar-se-á esfriar com bastantes cigarros
Pondo-lhe as beatas em torno.
Batôn.
Desodorizante em rodelas, pelo que é melhor
Se for stick, recortes de revistas da moda
E algumas frutas secas - por exemplo, artes.
Serve-se em prato único.
Aconselha-se, para acompanhar algumas pílulas
mas de preferência anticoncepcionais se não for preciso viagrar
Com o tempo e o modo.
8.24.2004
CIRCUNAVEGAÇÕES PERIFÉRICAS
Às vezes, quando a gente fala do sol e do mar, do smog de Gaia e do nevoeiro baço da Foz, do verde e do odor do moliço, do vento norte e dos vestidos garridos das raparigas, somos levados a percorrer um imenso espaço de solidão e maravilha, como se fôssemos os únicos habitantes de uma geografia desfalcada, dum mundo exótico com os úberes repletos de imaginário e languidez, de mitos clássicos e Ulisses distantes a fundarem cidades ribeirinhas, onde fervilham os pregões, as pontes do progresso e os acasos. Aventuramo-nos no irremediável e consentimos que a urbe seja uma afinidade entre nós, que o poder seja uma simples circunstância que nos agrupa, que o cimo do céu seja uma boca livre, que o desespero continue a ser a arma dos fracos opcionais, que a coragem mais não seja que uma curva apertada, que a indiferença não passe da agressividade vingativa do intelecto ostracizado, que o amor se confunda com um buscar contínuo de ser buscado, e que, enfim, aqueles que não conseguem amar pereçam sobre a podridão que merecem. Alimentamo-nos de coisas pequenas e verticais como poetas, objectos e produtos de higiene, sabões e pastas dentríficas, servindo-nos das palavras insubmissas e insurrectas, simbólicas e peregrinas, para desmuralharmos os quotidianos. Ficamos a habitar a maldição dos tempos insuspeitos, porquanto Ulyan também nos seduziu, corrompeu e traiu, circunscrevendo-nos ao ibérico destino. Somos a véspera de nós. E, claro, esquecemos, ou nem sequer ousamos constatar que, ali ao fundo, na última esquina que dobrámos, naquele “boa tarde” mal pronunciado e dado em favor à vizinha, no jornal semanário onde os cronistas escamoteiam e apresentam, sem qualquer rebuço, catástrofes e diarreias, no frigorífico com sua luz tímida de iluminar tomates, na embalagem com bico decepado do leite homogeneizado, na sopa de três dias com gordura coalhada a boiar no cimo, no passe dos transportes públicos ou no grafismo do cartão de crédito, nos cereais empacotados da miserável frugalidade, há muito mais esforço poético e valia artística, esgrimida nos símbolos que nos representam e vivificam, do que em todo aquele escarmento romântico de plástico & cartão com que queremos imortalizar e hipalgisar os hieróglifos alfabetos de todas as resenhas pátrias, conformando-as em hinos de instantes tão supremos quanto derradeiros, de ferrar a faca nas costas dos que amam.
Até quando?... Por enquanto os velhos ainda continuam a repetir que noutros tempos (os deles) é que se trabalhava a valer, é que a vida era dura e o amor era amor.
No meu quarto de aluguer, entre as peúgas e as cuecas sujas, que é o sítio ideal para guardar dicionários e gramáticas, tenho uma cadela embalsamada – ah, mentira grande e descarada esta!... –, que em viva acudia pelo nome de Carriça, e que hoje só resta como ideia infantil, embora em vida tenha sido bastante dedicada ao dono, e fiel, e meiga, e amiga, e inspiradora, e terapêutica, que me transporta ao sossego preciso e necessário para acreditar que existo. E sabem porquê? Porque vejo nela tudo quanto a literatura (a arte) pode ser. Tem o pêlo lustroso mas não larga pulgas! Os olhos falsos e brilhantes que nada reflectem nem imploram, e a pose majestática duma esfinge secular! Não come, não ladra, não carece de ser passeada, não morde, nem larga gases, mas impõe respeito em qualquer sala!
Óbvio se torna, por conseguinte, que a minha comparticipação nesta nunca venha a ser bem sucedida e aceite, tanto por futricas como por talassas, e legítimo é que assim seja (Amém! Aleluia Senhor! Graçazadeus! Aleluia!!!...), visto serem várias as razões que para tal concorrem: primeiro, porque ela assenta em postulados e numa imagética em que acredito inequivocamente, porque a vivi em ruminantes quezílias com a instituição “ensino e educação”; segundo, porque não quis dar-me à comodidade de preencher um espaço em branco da contra-literatura, epitetada a falsos modos de clandestina, marginal e populista; terceiro, porque as temáticas e motivos não servem para ensarilhar lamechices, agradar às tias e seduzir as sobrinhas do sistema, ou tampouco para converter níqueis discípulos em apaniguados Mercedes e BMW´s, ou fitar a originalidade naif de assentar na moda da diferença; e quarto, ó reino dos amaldiçoados da sorte, porque me estou literalmente cagando para quem não pensa como eu, quem pensa que o faz, quem o faz mas não pensa, ou de quem julga que é moderno só porque a sua ignorância não o deixa ver que essa modernidade já foi rejeitada por obsoleta há que séculos!
Contudo, a ajuizar pelo que fica dito, não se pense que me empenhei em desenfrear a lasciva fúria de quem por artes ciprianas detém a esgarçarçada molécula da comunicação e os desígnios do grão-falar. Que o propósito não é tão didáctico e sublime, senhores!... E embora saiba, quem não sabe?, que “os monstros existem mesmo fora da nossa imaginação”, não profanarei a sua auréola de eleitos...
A FORÇA DO TEM QUE SER
Não estamos aqui para competir,
Nem tu, nem eu, temos nada com isso.
Crias o que podes
E eu criarei igualmente o que puder.
Faço o que quero só por o fazer
E tu farás o que queres só por o querer.
Eu sei que hei-de lá chegar
E tu também tens uma meta realizável.
Por isso, se fores para o mesmo lado que eu,
Ou se eu for para o mesmo lado que tu,
Encontrar-nos-emos certamente, o que será baril;
Mas se tal não acontecer, deixa lá,
É porque assim não tinha que ser
E não valerá a pena reinventar Abril!
ZÉ MARMELO
Zé Marmelo era brigão e berrava lá no Sítio de Casal
Parado na minha terra do Zé Marmelo, porque ele, sabem
Nunca cagou sentenças na televisão e podia berrar
E o Sítio era dum brigão, que era ele a sitiar.
Às vezes, à tarde, em verões escaldantes, sentava-me
Na parede à beira do alcatrão apenas para o ouvir
E ele gritava e dizia que havia de a matar, que ela era
Uma puta, uma puta!!!, e ela era só a mulher e mãe
Dos filhos dele, mas ele não queria saber disso,
Queria era o dinheiro dela para beber mais uns copos
De branco (jamais conseguiriam que mudasse para tinto)
E poder jogar uma bisca de soldado, e ter motivos
Para discutir com outro qualquer
E esquecer-se da mulher.
À noite, madrugada fora, iria roubar que comer de dia
E os donos das hortas sabiam que ele os roubava
Mas não queriam saber, nem se importavam,
Pelo que Zé Marmelo morreu sem nunca ter pedido
Nunca ter implorado nada a ninguém.
Ah, carago! Se ele vivo fosse hoje e militasse no partido
Muito havia de ensinar a estes políticos que a gente tem!
QUANDO A DIFERENÇA É DIFERENTE
Os olhos são os olhos, e os rostos os rostos,
Mas aquilo que os faz sorrir é uma coisa muito diferente;
E, se, por acaso ou virtude, eles o não fazem
É porque para isso foram plantados e dispostos
Como semeados em desgostos podem ser de repente
Os meus e os teus, na presença de qualquer imagem.
Que tenhamos à nascença um rótulo
Que nem sequer queremos usar, pouco importa!
Que se fazem os corpos iguais sem (des)vantagem
É pura utopia gemebunda de virgo imáculo,
Pois onde a natureza talha e corta
Acaba-se a feira e o espectáculo
E nasce a diferença, como desta nasce a coragem.
Agora, se da diferença fizermos o selo da derrota
É bem verdade que a culpa guia o leme de nossa rota!
FUS(T)ÃO POSSÍVEL
1.
O desejo é antecipação.
Um olhar é uma oportunidade de contornos. Uma oportunidade é uma circunstância. O poder cresce-nos como cornos. Circunstantes e oportunos.
Vejo-te; logo, possuo-te. Aqui começa a minha teoria da masturbação. Uma teoria é uma prática idealizada. A ausência uma tabuada incompleta e incontida. E se estás ausente, és uma impressão, um retalho na objectividade.
Cada um dispõe de si teoricamente, e de todos se (não) ausentes. Eu serei aquilo que tu quiseres que eu seja numa idealização oportuna. Tu és aquilo que eu penso numa prática circunstancial. Num gesto de punho em sobe e desce, vejo-te; logo, possuo-te. Imagino-te, teorizo-te. A circunstância transcendental é uma posse imaginada. Sou uma figura de passe entre os demais e tu. Sou a consciência do eu entre mãos, e a sua viabilidade na condução.
Eu é uma consciência. Uma consciência é um caminho. Um caminho é uma via. E esta uma habilidade. Enquanto os outros, as coisas e tu, forem viáveis, eu serei o que tenho de ti: mas tu és a circunstância; logo, possuo-te. És a oportunidade do meu eu olhado. Sem ti eu não podia ser via. Não era caminho. Não existia.
Tu és a existência. Existir é imaginar. Imaginar é possuir. Tenho-te. Tenho-me. Existimos!
Se o acaso acontece, aconteces. Se anoitece, anoiteces. E se és dia, levanto-me. Os meus olhos são o que contornam. Eles olham-te e eu vivo. Aconteço. Anoiteço. Levanto-me. E salivo.
Gulosa, é a circunstância do eu, face à oportunidade da posse. Sou eu quem salivo. Tu me salivas em eu salivando-me. Desejo: oportunidade. Desejo: posse. Desejo-te possuindo-me. Possuo-me desejando-te. Imagino-me tendo-te.
Paradoxo? Afinidade? Luz. Luz. Luz. Quase dia. Luminosidade. Atracção contraditória: o pólo busca o pólo se houver energia. Fluxo paradoxal. Languidez gulosa do eu. Eu lânguido, possuído. Pressionado na posse. Pressão opaca do querer: paixão. Eu e tu; tu e eu; eu outro; outro tu. Outro eu-não.
Mexo os lábios. Profiro. Proferir é preferir. Pré-ferir. Prefiro os lábios. E os lábios proferem os olhos. As mamas. A púbis. O sexo. Mas os olhos preferem a palavra. E esta profere-se. Digo: constato. Cons acto. Acto constante de pr(o/e)ferir. Pré-ferir. Pró-ferir. Os lábios são ameixas doces!...
Comes. Lambuzas-te. Devoras. Mas o caroço dos dentes embate na palavra. A palavra é o gesto da língua, e o dialecto é (a)mar(-)te. Comemo-nos. Lábios quase tudo no gesto impreciso de um clitóris periclitante.
Na líquida solicitude... é aí que morro e tu renasces. O dia desponta sempre assim! Lês. Proferes-te. Comes. Beijas. Solícitas embatem constantes as palavras gulosas na imagem viável da oportunidade tu. Igualmente prefiro-te.
Cedo-me. Medo-se-me. Teme-se o medo de ceder. Teme-se o cedo. É tarde. O mundo fica mesmo ali...
Ali...
Ali...
... ao lado. Sempre ao lado. Eréctil.
Toca-lhe... Vá, toca-lhe!!!
2.
Se vires chegar a gaivota com o bico aloirado de sol, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires o pôr do sol raiado de violetas e uma brisa que vem do sul, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires uma criança descalça e desnuda correndo pela relva do Jardim do Palácio, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires algum velho sem-abrigo lambiscando a beata nos dedos amarelados, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o louco profeta de barbas despenteadas e sujas discursando contra o consumismo e energia nuclear, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o cão esquelético e faminto como pool de todos os abandonados do mundo, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires um papiro esvoaçando sobre a multidão mecanizada, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires cair da janela anónima uma fotografia rasgada, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires os teus olhos brilharem numa noite de luar, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires um sorriso urgente num rosto desconhecido, não estranhes; é a minha forma de estar contigo.
E depois de eu ter chegado
Muito depois do ainda não
E muito antes do já de volta
Finge que não me conheces
Faz gestos de negativa revolta
Faz negaças de comiseração
Faz traquinices de benesses
E dá o sonho por acabado.
Mas depois de eu implorar
De pedir um pouco de atenção
Inventa nomes que me trocam
Inventa partidas que te preguei
Inventa razões de negação
Inventam ditos que te adulam
Inventa actos que não pensei
E belisca-me para acordar.
E então depois de eu rogando
A teus pés pedir um sorriso
Diz-me, seca, fria, reclamando:
«Por favor... Tem juízo!»
E se então vires voltar ao nada uma fotografia, um papiro, um louco, um velho, uma criança, um pôr do sol, uma gaivota, um sem-abrigo, um cão, um sorriso, não entristeças, nem estranhes; é o Porto que me denuncia!
INSÓNIA DE VÉNUS
Aqui, não há humanidade nem moral...
Aqui, não há lei, não há fé, não há nada!
Aqui, tem-se somente a urgência total
De vencer o breu da noite desmaiada.
Aqui, a mecha niquelada manieta vil
Quem se atreva pela fresta deserta
Que nos deixaram Sebastião e Abril...
Aqui, apenas o sonho louco desperta!
Aqui, já se foi tudo quanto se pode ser.
Aqui, já se foi espada e coração de Jesus.
Aqui, já se fez guerra pelo amor de Mulher.
Aqui! Aqui... Onde as bocas se tocam em cruz
Houve uma borboleta que me veio dizer
O quanto é doce poisar em teus seios nus.
HISTÓRIA VERDADEIRA
Uma história verdadeira é um rei, uma mulher fértil
E um poeta pinga-amores.
Já me não apetece acabar as coisas
(Estou a ficar farto das latas de conserva!)
E quando meto por um caminho em que não encontro
Encruzilhadas, sinto fome e sede de alternativas.
Perco a lucidez se me depara tua boca sem hipótese de meu
Beijo (estou a ficar farto de consumos acabados!)
E quando meto por um corpo em que não encontro
Surpresas, sinto fome e sede de diferenças.
E desisto de mim se se profere o poema mais-que-perfeito
(Estou a ficar farto dos perfeccionismos castrativos!)
E quando meto por uma página sem cagadelas de mosca
Sinto dandys, dadás e dalis a corroer-me a consci
PASCI
ência-ência-ência-ência-ência.
É por isso que digo que numa história
Verdadeiro é um rei
Verdadeira é uma mulher fértil
Na mentira de um poeta pinga-amores.
Às vezes, quando a gente fala do sol e do mar, do smog de Gaia e do nevoeiro baço da Foz, do verde e do odor do moliço, do vento norte e dos vestidos garridos das raparigas, somos levados a percorrer um imenso espaço de solidão e maravilha, como se fôssemos os únicos habitantes de uma geografia desfalcada, dum mundo exótico com os úberes repletos de imaginário e languidez, de mitos clássicos e Ulisses distantes a fundarem cidades ribeirinhas, onde fervilham os pregões, as pontes do progresso e os acasos. Aventuramo-nos no irremediável e consentimos que a urbe seja uma afinidade entre nós, que o poder seja uma simples circunstância que nos agrupa, que o cimo do céu seja uma boca livre, que o desespero continue a ser a arma dos fracos opcionais, que a coragem mais não seja que uma curva apertada, que a indiferença não passe da agressividade vingativa do intelecto ostracizado, que o amor se confunda com um buscar contínuo de ser buscado, e que, enfim, aqueles que não conseguem amar pereçam sobre a podridão que merecem. Alimentamo-nos de coisas pequenas e verticais como poetas, objectos e produtos de higiene, sabões e pastas dentríficas, servindo-nos das palavras insubmissas e insurrectas, simbólicas e peregrinas, para desmuralharmos os quotidianos. Ficamos a habitar a maldição dos tempos insuspeitos, porquanto Ulyan também nos seduziu, corrompeu e traiu, circunscrevendo-nos ao ibérico destino. Somos a véspera de nós. E, claro, esquecemos, ou nem sequer ousamos constatar que, ali ao fundo, na última esquina que dobrámos, naquele “boa tarde” mal pronunciado e dado em favor à vizinha, no jornal semanário onde os cronistas escamoteiam e apresentam, sem qualquer rebuço, catástrofes e diarreias, no frigorífico com sua luz tímida de iluminar tomates, na embalagem com bico decepado do leite homogeneizado, na sopa de três dias com gordura coalhada a boiar no cimo, no passe dos transportes públicos ou no grafismo do cartão de crédito, nos cereais empacotados da miserável frugalidade, há muito mais esforço poético e valia artística, esgrimida nos símbolos que nos representam e vivificam, do que em todo aquele escarmento romântico de plástico & cartão com que queremos imortalizar e hipalgisar os hieróglifos alfabetos de todas as resenhas pátrias, conformando-as em hinos de instantes tão supremos quanto derradeiros, de ferrar a faca nas costas dos que amam.
Até quando?... Por enquanto os velhos ainda continuam a repetir que noutros tempos (os deles) é que se trabalhava a valer, é que a vida era dura e o amor era amor.
No meu quarto de aluguer, entre as peúgas e as cuecas sujas, que é o sítio ideal para guardar dicionários e gramáticas, tenho uma cadela embalsamada – ah, mentira grande e descarada esta!... –, que em viva acudia pelo nome de Carriça, e que hoje só resta como ideia infantil, embora em vida tenha sido bastante dedicada ao dono, e fiel, e meiga, e amiga, e inspiradora, e terapêutica, que me transporta ao sossego preciso e necessário para acreditar que existo. E sabem porquê? Porque vejo nela tudo quanto a literatura (a arte) pode ser. Tem o pêlo lustroso mas não larga pulgas! Os olhos falsos e brilhantes que nada reflectem nem imploram, e a pose majestática duma esfinge secular! Não come, não ladra, não carece de ser passeada, não morde, nem larga gases, mas impõe respeito em qualquer sala!
Óbvio se torna, por conseguinte, que a minha comparticipação nesta nunca venha a ser bem sucedida e aceite, tanto por futricas como por talassas, e legítimo é que assim seja (Amém! Aleluia Senhor! Graçazadeus! Aleluia!!!...), visto serem várias as razões que para tal concorrem: primeiro, porque ela assenta em postulados e numa imagética em que acredito inequivocamente, porque a vivi em ruminantes quezílias com a instituição “ensino e educação”; segundo, porque não quis dar-me à comodidade de preencher um espaço em branco da contra-literatura, epitetada a falsos modos de clandestina, marginal e populista; terceiro, porque as temáticas e motivos não servem para ensarilhar lamechices, agradar às tias e seduzir as sobrinhas do sistema, ou tampouco para converter níqueis discípulos em apaniguados Mercedes e BMW´s, ou fitar a originalidade naif de assentar na moda da diferença; e quarto, ó reino dos amaldiçoados da sorte, porque me estou literalmente cagando para quem não pensa como eu, quem pensa que o faz, quem o faz mas não pensa, ou de quem julga que é moderno só porque a sua ignorância não o deixa ver que essa modernidade já foi rejeitada por obsoleta há que séculos!
Contudo, a ajuizar pelo que fica dito, não se pense que me empenhei em desenfrear a lasciva fúria de quem por artes ciprianas detém a esgarçarçada molécula da comunicação e os desígnios do grão-falar. Que o propósito não é tão didáctico e sublime, senhores!... E embora saiba, quem não sabe?, que “os monstros existem mesmo fora da nossa imaginação”, não profanarei a sua auréola de eleitos...
A FORÇA DO TEM QUE SER
Não estamos aqui para competir,
Nem tu, nem eu, temos nada com isso.
Crias o que podes
E eu criarei igualmente o que puder.
Faço o que quero só por o fazer
E tu farás o que queres só por o querer.
Eu sei que hei-de lá chegar
E tu também tens uma meta realizável.
Por isso, se fores para o mesmo lado que eu,
Ou se eu for para o mesmo lado que tu,
Encontrar-nos-emos certamente, o que será baril;
Mas se tal não acontecer, deixa lá,
É porque assim não tinha que ser
E não valerá a pena reinventar Abril!
ZÉ MARMELO
Zé Marmelo era brigão e berrava lá no Sítio de Casal
Parado na minha terra do Zé Marmelo, porque ele, sabem
Nunca cagou sentenças na televisão e podia berrar
E o Sítio era dum brigão, que era ele a sitiar.
Às vezes, à tarde, em verões escaldantes, sentava-me
Na parede à beira do alcatrão apenas para o ouvir
E ele gritava e dizia que havia de a matar, que ela era
Uma puta, uma puta!!!, e ela era só a mulher e mãe
Dos filhos dele, mas ele não queria saber disso,
Queria era o dinheiro dela para beber mais uns copos
De branco (jamais conseguiriam que mudasse para tinto)
E poder jogar uma bisca de soldado, e ter motivos
Para discutir com outro qualquer
E esquecer-se da mulher.
À noite, madrugada fora, iria roubar que comer de dia
E os donos das hortas sabiam que ele os roubava
Mas não queriam saber, nem se importavam,
Pelo que Zé Marmelo morreu sem nunca ter pedido
Nunca ter implorado nada a ninguém.
Ah, carago! Se ele vivo fosse hoje e militasse no partido
Muito havia de ensinar a estes políticos que a gente tem!
QUANDO A DIFERENÇA É DIFERENTE
Os olhos são os olhos, e os rostos os rostos,
Mas aquilo que os faz sorrir é uma coisa muito diferente;
E, se, por acaso ou virtude, eles o não fazem
É porque para isso foram plantados e dispostos
Como semeados em desgostos podem ser de repente
Os meus e os teus, na presença de qualquer imagem.
Que tenhamos à nascença um rótulo
Que nem sequer queremos usar, pouco importa!
Que se fazem os corpos iguais sem (des)vantagem
É pura utopia gemebunda de virgo imáculo,
Pois onde a natureza talha e corta
Acaba-se a feira e o espectáculo
E nasce a diferença, como desta nasce a coragem.
Agora, se da diferença fizermos o selo da derrota
É bem verdade que a culpa guia o leme de nossa rota!
FUS(T)ÃO POSSÍVEL
1.
O desejo é antecipação.
Um olhar é uma oportunidade de contornos. Uma oportunidade é uma circunstância. O poder cresce-nos como cornos. Circunstantes e oportunos.
Vejo-te; logo, possuo-te. Aqui começa a minha teoria da masturbação. Uma teoria é uma prática idealizada. A ausência uma tabuada incompleta e incontida. E se estás ausente, és uma impressão, um retalho na objectividade.
Cada um dispõe de si teoricamente, e de todos se (não) ausentes. Eu serei aquilo que tu quiseres que eu seja numa idealização oportuna. Tu és aquilo que eu penso numa prática circunstancial. Num gesto de punho em sobe e desce, vejo-te; logo, possuo-te. Imagino-te, teorizo-te. A circunstância transcendental é uma posse imaginada. Sou uma figura de passe entre os demais e tu. Sou a consciência do eu entre mãos, e a sua viabilidade na condução.
Eu é uma consciência. Uma consciência é um caminho. Um caminho é uma via. E esta uma habilidade. Enquanto os outros, as coisas e tu, forem viáveis, eu serei o que tenho de ti: mas tu és a circunstância; logo, possuo-te. És a oportunidade do meu eu olhado. Sem ti eu não podia ser via. Não era caminho. Não existia.
Tu és a existência. Existir é imaginar. Imaginar é possuir. Tenho-te. Tenho-me. Existimos!
Se o acaso acontece, aconteces. Se anoitece, anoiteces. E se és dia, levanto-me. Os meus olhos são o que contornam. Eles olham-te e eu vivo. Aconteço. Anoiteço. Levanto-me. E salivo.
Gulosa, é a circunstância do eu, face à oportunidade da posse. Sou eu quem salivo. Tu me salivas em eu salivando-me. Desejo: oportunidade. Desejo: posse. Desejo-te possuindo-me. Possuo-me desejando-te. Imagino-me tendo-te.
Paradoxo? Afinidade? Luz. Luz. Luz. Quase dia. Luminosidade. Atracção contraditória: o pólo busca o pólo se houver energia. Fluxo paradoxal. Languidez gulosa do eu. Eu lânguido, possuído. Pressionado na posse. Pressão opaca do querer: paixão. Eu e tu; tu e eu; eu outro; outro tu. Outro eu-não.
Mexo os lábios. Profiro. Proferir é preferir. Pré-ferir. Prefiro os lábios. E os lábios proferem os olhos. As mamas. A púbis. O sexo. Mas os olhos preferem a palavra. E esta profere-se. Digo: constato. Cons acto. Acto constante de pr(o/e)ferir. Pré-ferir. Pró-ferir. Os lábios são ameixas doces!...
Comes. Lambuzas-te. Devoras. Mas o caroço dos dentes embate na palavra. A palavra é o gesto da língua, e o dialecto é (a)mar(-)te. Comemo-nos. Lábios quase tudo no gesto impreciso de um clitóris periclitante.
Na líquida solicitude... é aí que morro e tu renasces. O dia desponta sempre assim! Lês. Proferes-te. Comes. Beijas. Solícitas embatem constantes as palavras gulosas na imagem viável da oportunidade tu. Igualmente prefiro-te.
Cedo-me. Medo-se-me. Teme-se o medo de ceder. Teme-se o cedo. É tarde. O mundo fica mesmo ali...
Ali...
Ali...
... ao lado. Sempre ao lado. Eréctil.
Toca-lhe... Vá, toca-lhe!!!
2.
Se vires chegar a gaivota com o bico aloirado de sol, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires o pôr do sol raiado de violetas e uma brisa que vem do sul, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires uma criança descalça e desnuda correndo pela relva do Jardim do Palácio, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires algum velho sem-abrigo lambiscando a beata nos dedos amarelados, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o louco profeta de barbas despenteadas e sujas discursando contra o consumismo e energia nuclear, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires o cão esquelético e faminto como pool de todos os abandonados do mundo, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires um papiro esvoaçando sobre a multidão mecanizada, não estranhes; ele me anuncia.
Se vires cair da janela anónima uma fotografia rasgada, não estranhes; ela me anuncia.
Se vires os teus olhos brilharem numa noite de luar, não estranhes; eles me anunciam.
Se vires um sorriso urgente num rosto desconhecido, não estranhes; é a minha forma de estar contigo.
E depois de eu ter chegado
Muito depois do ainda não
E muito antes do já de volta
Finge que não me conheces
Faz gestos de negativa revolta
Faz negaças de comiseração
Faz traquinices de benesses
E dá o sonho por acabado.
Mas depois de eu implorar
De pedir um pouco de atenção
Inventa nomes que me trocam
Inventa partidas que te preguei
Inventa razões de negação
Inventam ditos que te adulam
Inventa actos que não pensei
E belisca-me para acordar.
E então depois de eu rogando
A teus pés pedir um sorriso
Diz-me, seca, fria, reclamando:
«Por favor... Tem juízo!»
E se então vires voltar ao nada uma fotografia, um papiro, um louco, um velho, uma criança, um pôr do sol, uma gaivota, um sem-abrigo, um cão, um sorriso, não entristeças, nem estranhes; é o Porto que me denuncia!
INSÓNIA DE VÉNUS
Aqui, não há humanidade nem moral...
Aqui, não há lei, não há fé, não há nada!
Aqui, tem-se somente a urgência total
De vencer o breu da noite desmaiada.
Aqui, a mecha niquelada manieta vil
Quem se atreva pela fresta deserta
Que nos deixaram Sebastião e Abril...
Aqui, apenas o sonho louco desperta!
Aqui, já se foi tudo quanto se pode ser.
Aqui, já se foi espada e coração de Jesus.
Aqui, já se fez guerra pelo amor de Mulher.
Aqui! Aqui... Onde as bocas se tocam em cruz
Houve uma borboleta que me veio dizer
O quanto é doce poisar em teus seios nus.
HISTÓRIA VERDADEIRA
Uma história verdadeira é um rei, uma mulher fértil
E um poeta pinga-amores.
Já me não apetece acabar as coisas
(Estou a ficar farto das latas de conserva!)
E quando meto por um caminho em que não encontro
Encruzilhadas, sinto fome e sede de alternativas.
Perco a lucidez se me depara tua boca sem hipótese de meu
Beijo (estou a ficar farto de consumos acabados!)
E quando meto por um corpo em que não encontro
Surpresas, sinto fome e sede de diferenças.
E desisto de mim se se profere o poema mais-que-perfeito
(Estou a ficar farto dos perfeccionismos castrativos!)
E quando meto por uma página sem cagadelas de mosca
Sinto dandys, dadás e dalis a corroer-me a consci
PASCI
ência-ência-ência-ência-ência.
É por isso que digo que numa história
Verdadeiro é um rei
Verdadeira é uma mulher fértil
Na mentira de um poeta pinga-amores.
8.16.2004
1. as estações em volta
O TEMPO
Certamente, o tempo cria
Mas o tempo também mata
A hibernação, parêntisis de vida
Adia palavras soturnas
Absorve a desvontade de experiência
E em coração lento esvazia-se o espaço
Evita-se a permeabilidade evidente do corpo
E as violações atmosféricas.
Premei-se a preguiça
E o tempo esquece.
DE ESTAÇÕES
Numa primavera qualquer
Talvez na última
Fez-se alegria
Depois no verão
Que foi tumulto e ferocidade
Deu-se a revolução
Agora, outono da melancolia
E ansiedade
O inverno não tarda
E eu escondo-me
Entre comas e aspas
Evitando a decepção.
ACASO
É um acaso
A morte
A brisa, o gelo, a vida
O vento norte.
É um acaso
A solidão
A chuva, o rio, o amigo
A multidão.
É um acaso
O amor
O nevoeiro, a trovoada, o abraço
O grito de dor.
É um acaso
A sorte
A vida, a amizade, no regaço
da estação da morte.
CÁLICE DE PÉTALAS
No corpo da flor do jardim
Relembro a estação que a criou
Vejo no chão seco e gelado
O tempo que chega calado
E aguardo, ansiando, um lugar
Onde o inverno já passou.
NATURAL
É comum viver, pensar, agir e ser
Só a folha caída, perdida, inerte
Pisada
Se alheia do vento agreste que sopra do leste
E não luta.
É comum a batalha, a angústia, o vinho e a talha
Só a chuva cinzenta, fria, incerta
Gelada
Se alheia do tempo cruel no calendário de papel
E não escuta.
É como inventar, discutir, prever e falar
Da vida dos outros, desta e daquela
E pelo seu comportamento diferente, despreocupado
Indiferente e ocupado
A vida é apelidada de puta.
BANHO
Transporto no corpo
O sol que limpa e aquece
Nos cabelos
As folhas castanhas de um outono
E nas mãos em concha
Guardo a água fresca que no verão
Não esquece.
INEVITÁVEL
Posso mentir
Posso enganar, repelir e contornar
De palavras e de gestos
A próxima estação
Mas não posso evitar
O frio, o vento, o desaconchego
Com um simples
Não.
PEDAÇOS
De promessas de primavera
Decoro a casa e enfeito o cabelo
De minutos de verão
Visto o corpo e encho a algibeira
De paisagens de outono
Pinto as palavras e deslumbro os olhos
De frieza de inverno
Nego o espírito e rasgo o livro
Que não escrevi
Na preguiça dos serões
Sentada
Frente à lareira.
NEGO
Parece que esqueço
O sol, a cor, o tempo, o espaço e o torpor
De estações passadas
Com medo
Do frio, do cinzento, do vítreo e do incolor
Penso e estremeço
Porque é de prisão o jogo brumoso e baço
E escondo o corpo, o riso, o gesto e a palavra
Nego o deslumbramento de trocar o amor
E por detrás de uma porta
Envolvo o esquecimento
Com o meu próprio abraço.
INVERNO
Afinal é possível e esperado
O tempo frio, ventoso e esquecido
Inevitável a tempestade de inverno
Estação de receios e sofrimento
Causa de angústia e solidão
De poemas, palavras simples e rebeldes
De nostalgia e esquecimento.
Afinal é de beleza e de saudade
O tempo puro, lânguido e enternecido
Inevitável a liberdade de inverno
Estação de reencontros e sentimento
Permite a existência e inspiração
De música, melodias simples devaneios
De natureza
De contemplamento
De volúpia e de paixão.
2. companheiro de tropel
Por nada, olho parada
As crianças que se abrigam do mundo
A mão estendida não toca
E o vazio enche o eco de temores
Escondidos nas lágrimas de cristal.
Por entre as chamas de carne
Passeiam descalças comendo doces
Que fingem mães num abraço.
Acordo, em soluços e rumores
E sento-me nas conversas
De teor frívolo e imundo
Batendo as mãos em palmas, ouço vozes
Subindo no céu em espiral,
Procurando um tempo e um espaço
Onde poderão, um dia, sentir,
Viver e sorrir com calma.
Um lugar, onde as mãos unidas
Produzam poesia e paz
E as gargalhadas ecoem
Num grito único, universal.
Avó,
O tempo, porque passa?
O pêndulo do relógio de parede afrouxa
E enquanto avança o tempo por nada
O pêndulo pára.
Avó,
E agora?
Ficarei sempre com esta idade?
Enquanto a mãe, sem tempo, abraça
E de milagre, faz a vida parada
O filho, criança linda, cresce.
O olhar de ingénua luminosidade,
Perde, indiferente, a graça.
E o sonho de menino, desvanece.
Na vila o tempo é tudo
E o ninho, a pesca e o vento
Passam e reflectem um olhar sereno
De paz e ingenuidade.
Mas a vila é do mundo
E a vida embarga em processo lento
Tornando o sonho num lugar terreno
Invadido por laivos frios da cidade.
É ele,
Sorri de tudo e de nada,
Atira pedras às aves que passam,
Rouba vozes na praça,
Espreita as revistas nas montras
E fere com palavras a rapaziada.
Sabe as contas e as respostas,
Mas prefere escrita e leitura.
É esperto, vívido e rebelde
Mas sabe de amor e ternura,
Sabe o sim e o mistério,
Repele, mas também abraça,
Esconde o tempo em lugar secreto
Enfrenta a vida com desdém e raiva,
Mas anoitece no sonho, com brandura.
Perco o olhar nas sombras
De braços erguidos, nos sujos muros.
Nas legendas coçadas dos grafites anónimos,
Em ecos longínquos escuto
O rufar de vozes gritantes
Que profetizam ideais futuros.
O branco do horizonte desenha
O amanhã idêntico ao hoje,
E encosto o corpo dorido
Na grade escurecida da fonte
Perdendo, lentamente, a força
Que afasta o medo em direcções incertas
Ferindo de agulhas as palavras vazias
De gente que veste de poder os corpos.
E o nevoeiro amanhece o rosto cansado,
Baço de sonhos remotos
E preso na imobilidade de lutas tardias.
É de tudo o vazio, além.
Inspiro fragilidades
Que percorrem as veias
Enleadas de susto.
Expiro fragmentos
De palavras rochosas
Que ouço e imito de ver.
E as crateras alargam
Expelindo escuras e ardentes
Lavas de verdade.
Atiro as mãos, para lá das sombras
E seguro nos dedos
As noites que acabam
E os sonhos que se negam
A existir nas vidas sem liberdade.
Avó,
De tudo o que sabes,
O que mais gostas?
De mim, do mar ou do vento?
Do vento não pode ser
Porque é frio e leva o telheiro!
Do mar, talvez não,
Que devora o pescador!
E a mãe alimenta o filho sedento,
Que no lençol brando se deita
Feito de sonho verdadeiro,
De longos braços estendidos
Desvanecendo-se nela de amor.
Gosto do riso
E do lábio sujo de tinta.
Sento-me à tua frente e observo:
Como falas dos dias e do mal,
Das aventuras nos sonhos agitados
Que afastas de manhã com os doces
Porque os lençóis estavam molhados.
Leio nos teus olhos húmidos de cristal
As vontades incertas de amar
E os abraços que te foram negados.
Nos teus gestos, admiro a certeza
Da espera de um momento lento
Em que o sol desperte
E te aloire os cabelos despenteados,
Pela fresta que teimas em fechar.
No acaso dos dias cinzentos
Perguntas:
Avó,
Porque é a noite, escura?
Para as estrelas poderem brilhar?
Para que o sol possa dormir?
Para que eu não possa brincar?
Para que no meu sonho eu possa existir?
Ou, simplesmente,
Para que tu possas descansar?!
A noite é escura por tudo
E às vezes, também, por nada,
Chega muito devagarinho,
E, lentamente, escurece
Para que tu, a possas dormir.
Aparentemente o rebordo do tempo
Apresenta-se calmo
Nem nuvem, nem tempestade
Se alinham no horizonte.
Apenas a brisa leve do poente
Se empolga nos sorrisos treinados
Que desejam embarcar ao largo
Pulsando nas veias o desconhecido.
É a vida
Relatas tu nos textos escritos ao acaso,
Onde perdes a inocência e a virgindade,
Imaginando factos inacessíveis
Que escondes no sonho apertado
Num colete de forças que manténs intacto
E onde ninguém poderá invadir
Os segredos que aparentemente
Toda a gente sabe.
Sais de ti para o luar da noite
E foges nas estrelas interditas
Rastejando em vontades e mitos
Soletrando orações confundidas
De olhar fixo no ponto distante
Que veneras e no qual, ainda, acreditas.
Não desejaria, nunca, perturbar o teu espaço,
Apenas enveredar nas coordenadas
Que já imaginaste
E presenciar as cores da vida
Que enredaste no teu abraço.
É leve o sonho que desenhaste
E sublime a força da partida
Que no rascunho corta as barreiras imaginadas.
A tua casa é o teu preço caro
E o sol que se põe, o berço preciso
Para as viagens que tentas comprar
Sem nexo, sem fim real.
Mas a máscara que alugas, é sensível
E eu posso, de longe, mirar
Todos os gestos que imitas do mundo
E ver-te, fingindo, a sangrar
A vida que te é, quase, possível.
Sobranceiro ao gesto
O espaço.
De olhar fixo, no chão.
Avó,
Porque ecoa o grito que abafo?
Não ouves, no escuro, o silêncio?
Sou eu, avó, que volteio a razão.
Não sou capaz e basta.
Sinto falta do mundo
Que ensinaste,
E eu num canto cismava
Segurando na idade, o serão,
De noites, frias, ao relento,
Pulando os muros e mirando as vidraças
De luz e família, pintadas
Onde tu não estavas e eu faltava.
Escorregas devagarinho
Nos lençóis brancos de bruma
E no limiar do fresco cacimbo,
Cruzas os braços à volta do luar.
Não gostas da rua e do vazio
E retornas ao amniótico prazer
De pernas dobradas e as mãos no ventre
Viajando no tempo de ócio,
De nesgas que permitam amar
Pensas as vozes do corpo
E preferes, de soslaio
Aquele tempo que foi de nascer.
Podias ter dito, apenas,
Avó
Que grande foi o erro de nascer,
E não deixares o tempo gastar
Uma infância longínqua que
Fica para trás a esquecer
O encanto, o choro e o riso
De gestos que se sumiram num abraço
À volta do mundo por descobrir.
E agora o desencanto e a desilusão
Invadem o sonho que gela e embaraça
E suja os lençóis que mudas de angústia
Num silêncio de amor
Que ainda tentas descobrir
E me deixa esquecido num canto
Silenciando o costume
De um usual e teimoso, NÃO.
É um ano incendiário e guerreiro,
Avó.
Regastes as plantas?
O cão já comeu?
Que fazes debaixo desse vulto de silêncio?
A vida passa!
Não durmas ainda,
Conta aquela história que fala de nós.
No dia em que nos perdemos
No mato e gritámos, apenas,
Para não nos sentirmos sós.
Quero ouvir o teu modo de amar,
E crescer tranquilo.
Deixa-me afagar o teu colo,
E por entre as portas abertas
Ouvir o riso e mirar a voz
Que me fez gente, por entre os outros
Sem precisar de saber que
Para ser adulto é necessário ser duro
E ir à escola aprender
A desenlear a vida
E a soltá-la dos nós.
O TEMPO
Certamente, o tempo cria
Mas o tempo também mata
A hibernação, parêntisis de vida
Adia palavras soturnas
Absorve a desvontade de experiência
E em coração lento esvazia-se o espaço
Evita-se a permeabilidade evidente do corpo
E as violações atmosféricas.
Premei-se a preguiça
E o tempo esquece.
DE ESTAÇÕES
Numa primavera qualquer
Talvez na última
Fez-se alegria
Depois no verão
Que foi tumulto e ferocidade
Deu-se a revolução
Agora, outono da melancolia
E ansiedade
O inverno não tarda
E eu escondo-me
Entre comas e aspas
Evitando a decepção.
ACASO
É um acaso
A morte
A brisa, o gelo, a vida
O vento norte.
É um acaso
A solidão
A chuva, o rio, o amigo
A multidão.
É um acaso
O amor
O nevoeiro, a trovoada, o abraço
O grito de dor.
É um acaso
A sorte
A vida, a amizade, no regaço
da estação da morte.
CÁLICE DE PÉTALAS
No corpo da flor do jardim
Relembro a estação que a criou
Vejo no chão seco e gelado
O tempo que chega calado
E aguardo, ansiando, um lugar
Onde o inverno já passou.
NATURAL
É comum viver, pensar, agir e ser
Só a folha caída, perdida, inerte
Pisada
Se alheia do vento agreste que sopra do leste
E não luta.
É comum a batalha, a angústia, o vinho e a talha
Só a chuva cinzenta, fria, incerta
Gelada
Se alheia do tempo cruel no calendário de papel
E não escuta.
É como inventar, discutir, prever e falar
Da vida dos outros, desta e daquela
E pelo seu comportamento diferente, despreocupado
Indiferente e ocupado
A vida é apelidada de puta.
BANHO
Transporto no corpo
O sol que limpa e aquece
Nos cabelos
As folhas castanhas de um outono
E nas mãos em concha
Guardo a água fresca que no verão
Não esquece.
INEVITÁVEL
Posso mentir
Posso enganar, repelir e contornar
De palavras e de gestos
A próxima estação
Mas não posso evitar
O frio, o vento, o desaconchego
Com um simples
Não.
PEDAÇOS
De promessas de primavera
Decoro a casa e enfeito o cabelo
De minutos de verão
Visto o corpo e encho a algibeira
De paisagens de outono
Pinto as palavras e deslumbro os olhos
De frieza de inverno
Nego o espírito e rasgo o livro
Que não escrevi
Na preguiça dos serões
Sentada
Frente à lareira.
NEGO
Parece que esqueço
O sol, a cor, o tempo, o espaço e o torpor
De estações passadas
Com medo
Do frio, do cinzento, do vítreo e do incolor
Penso e estremeço
Porque é de prisão o jogo brumoso e baço
E escondo o corpo, o riso, o gesto e a palavra
Nego o deslumbramento de trocar o amor
E por detrás de uma porta
Envolvo o esquecimento
Com o meu próprio abraço.
INVERNO
Afinal é possível e esperado
O tempo frio, ventoso e esquecido
Inevitável a tempestade de inverno
Estação de receios e sofrimento
Causa de angústia e solidão
De poemas, palavras simples e rebeldes
De nostalgia e esquecimento.
Afinal é de beleza e de saudade
O tempo puro, lânguido e enternecido
Inevitável a liberdade de inverno
Estação de reencontros e sentimento
Permite a existência e inspiração
De música, melodias simples devaneios
De natureza
De contemplamento
De volúpia e de paixão.
2. companheiro de tropel
Por nada, olho parada
As crianças que se abrigam do mundo
A mão estendida não toca
E o vazio enche o eco de temores
Escondidos nas lágrimas de cristal.
Por entre as chamas de carne
Passeiam descalças comendo doces
Que fingem mães num abraço.
Acordo, em soluços e rumores
E sento-me nas conversas
De teor frívolo e imundo
Batendo as mãos em palmas, ouço vozes
Subindo no céu em espiral,
Procurando um tempo e um espaço
Onde poderão, um dia, sentir,
Viver e sorrir com calma.
Um lugar, onde as mãos unidas
Produzam poesia e paz
E as gargalhadas ecoem
Num grito único, universal.
Avó,
O tempo, porque passa?
O pêndulo do relógio de parede afrouxa
E enquanto avança o tempo por nada
O pêndulo pára.
Avó,
E agora?
Ficarei sempre com esta idade?
Enquanto a mãe, sem tempo, abraça
E de milagre, faz a vida parada
O filho, criança linda, cresce.
O olhar de ingénua luminosidade,
Perde, indiferente, a graça.
E o sonho de menino, desvanece.
Na vila o tempo é tudo
E o ninho, a pesca e o vento
Passam e reflectem um olhar sereno
De paz e ingenuidade.
Mas a vila é do mundo
E a vida embarga em processo lento
Tornando o sonho num lugar terreno
Invadido por laivos frios da cidade.
É ele,
Sorri de tudo e de nada,
Atira pedras às aves que passam,
Rouba vozes na praça,
Espreita as revistas nas montras
E fere com palavras a rapaziada.
Sabe as contas e as respostas,
Mas prefere escrita e leitura.
É esperto, vívido e rebelde
Mas sabe de amor e ternura,
Sabe o sim e o mistério,
Repele, mas também abraça,
Esconde o tempo em lugar secreto
Enfrenta a vida com desdém e raiva,
Mas anoitece no sonho, com brandura.
Perco o olhar nas sombras
De braços erguidos, nos sujos muros.
Nas legendas coçadas dos grafites anónimos,
Em ecos longínquos escuto
O rufar de vozes gritantes
Que profetizam ideais futuros.
O branco do horizonte desenha
O amanhã idêntico ao hoje,
E encosto o corpo dorido
Na grade escurecida da fonte
Perdendo, lentamente, a força
Que afasta o medo em direcções incertas
Ferindo de agulhas as palavras vazias
De gente que veste de poder os corpos.
E o nevoeiro amanhece o rosto cansado,
Baço de sonhos remotos
E preso na imobilidade de lutas tardias.
É de tudo o vazio, além.
Inspiro fragilidades
Que percorrem as veias
Enleadas de susto.
Expiro fragmentos
De palavras rochosas
Que ouço e imito de ver.
E as crateras alargam
Expelindo escuras e ardentes
Lavas de verdade.
Atiro as mãos, para lá das sombras
E seguro nos dedos
As noites que acabam
E os sonhos que se negam
A existir nas vidas sem liberdade.
Avó,
De tudo o que sabes,
O que mais gostas?
De mim, do mar ou do vento?
Do vento não pode ser
Porque é frio e leva o telheiro!
Do mar, talvez não,
Que devora o pescador!
E a mãe alimenta o filho sedento,
Que no lençol brando se deita
Feito de sonho verdadeiro,
De longos braços estendidos
Desvanecendo-se nela de amor.
Gosto do riso
E do lábio sujo de tinta.
Sento-me à tua frente e observo:
Como falas dos dias e do mal,
Das aventuras nos sonhos agitados
Que afastas de manhã com os doces
Porque os lençóis estavam molhados.
Leio nos teus olhos húmidos de cristal
As vontades incertas de amar
E os abraços que te foram negados.
Nos teus gestos, admiro a certeza
Da espera de um momento lento
Em que o sol desperte
E te aloire os cabelos despenteados,
Pela fresta que teimas em fechar.
No acaso dos dias cinzentos
Perguntas:
Avó,
Porque é a noite, escura?
Para as estrelas poderem brilhar?
Para que o sol possa dormir?
Para que eu não possa brincar?
Para que no meu sonho eu possa existir?
Ou, simplesmente,
Para que tu possas descansar?!
A noite é escura por tudo
E às vezes, também, por nada,
Chega muito devagarinho,
E, lentamente, escurece
Para que tu, a possas dormir.
Aparentemente o rebordo do tempo
Apresenta-se calmo
Nem nuvem, nem tempestade
Se alinham no horizonte.
Apenas a brisa leve do poente
Se empolga nos sorrisos treinados
Que desejam embarcar ao largo
Pulsando nas veias o desconhecido.
É a vida
Relatas tu nos textos escritos ao acaso,
Onde perdes a inocência e a virgindade,
Imaginando factos inacessíveis
Que escondes no sonho apertado
Num colete de forças que manténs intacto
E onde ninguém poderá invadir
Os segredos que aparentemente
Toda a gente sabe.
Sais de ti para o luar da noite
E foges nas estrelas interditas
Rastejando em vontades e mitos
Soletrando orações confundidas
De olhar fixo no ponto distante
Que veneras e no qual, ainda, acreditas.
Não desejaria, nunca, perturbar o teu espaço,
Apenas enveredar nas coordenadas
Que já imaginaste
E presenciar as cores da vida
Que enredaste no teu abraço.
É leve o sonho que desenhaste
E sublime a força da partida
Que no rascunho corta as barreiras imaginadas.
A tua casa é o teu preço caro
E o sol que se põe, o berço preciso
Para as viagens que tentas comprar
Sem nexo, sem fim real.
Mas a máscara que alugas, é sensível
E eu posso, de longe, mirar
Todos os gestos que imitas do mundo
E ver-te, fingindo, a sangrar
A vida que te é, quase, possível.
Sobranceiro ao gesto
O espaço.
De olhar fixo, no chão.
Avó,
Porque ecoa o grito que abafo?
Não ouves, no escuro, o silêncio?
Sou eu, avó, que volteio a razão.
Não sou capaz e basta.
Sinto falta do mundo
Que ensinaste,
E eu num canto cismava
Segurando na idade, o serão,
De noites, frias, ao relento,
Pulando os muros e mirando as vidraças
De luz e família, pintadas
Onde tu não estavas e eu faltava.
Escorregas devagarinho
Nos lençóis brancos de bruma
E no limiar do fresco cacimbo,
Cruzas os braços à volta do luar.
Não gostas da rua e do vazio
E retornas ao amniótico prazer
De pernas dobradas e as mãos no ventre
Viajando no tempo de ócio,
De nesgas que permitam amar
Pensas as vozes do corpo
E preferes, de soslaio
Aquele tempo que foi de nascer.
Podias ter dito, apenas,
Avó
Que grande foi o erro de nascer,
E não deixares o tempo gastar
Uma infância longínqua que
Fica para trás a esquecer
O encanto, o choro e o riso
De gestos que se sumiram num abraço
À volta do mundo por descobrir.
E agora o desencanto e a desilusão
Invadem o sonho que gela e embaraça
E suja os lençóis que mudas de angústia
Num silêncio de amor
Que ainda tentas descobrir
E me deixa esquecido num canto
Silenciando o costume
De um usual e teimoso, NÃO.
É um ano incendiário e guerreiro,
Avó.
Regastes as plantas?
O cão já comeu?
Que fazes debaixo desse vulto de silêncio?
A vida passa!
Não durmas ainda,
Conta aquela história que fala de nós.
No dia em que nos perdemos
No mato e gritámos, apenas,
Para não nos sentirmos sós.
Quero ouvir o teu modo de amar,
E crescer tranquilo.
Deixa-me afagar o teu colo,
E por entre as portas abertas
Ouvir o riso e mirar a voz
Que me fez gente, por entre os outros
Sem precisar de saber que
Para ser adulto é necessário ser duro
E ir à escola aprender
A desenlear a vida
E a soltá-la dos nós.
8.13.2004
AMOR
O amor é como magma.
No início, cera derretida
de vela com ligeira chama.
Mais tarde fogueira crepitante,
em crescendo revolvida,
que forma e reforma.
Depois, lava em corrente,
que sai em borbotão
de cada nova erupção,
e ardente, lasciva, procura
chegar o mais longe que puder.
E só então arrefece e, dura,
forma escuras brechas de mulher.
ALQUIMIAS:
No princípio, o amor
começa como barro,
tomando forma
por mãos habilidosas moldado.
Depois é gelatina
instável e hesitante.
Se de repente vira cristal
é lindo, embora frágil.
Mas para o vidro durar
tem de ser revestido,
de prata por exemplo.
Pode ficar ouro com o tempo
ou apenas oxidar.
Nalguns casos (tão poucos)
o cristal vira diamante
e nada, nada o pode quebrar.
VULCÕES:
Nalguns vulcões mais activos
formam-se no interior brilhantes,
tão bonitos, tão vivos,
reflectem todas as cores
Noutros só pedras escuras,
basalto e mais nada
quando ficam duras
e a fonte de calor é roubada
ANA PINTÃO
O amor é como magma.
No início, cera derretida
de vela com ligeira chama.
Mais tarde fogueira crepitante,
em crescendo revolvida,
que forma e reforma.
Depois, lava em corrente,
que sai em borbotão
de cada nova erupção,
e ardente, lasciva, procura
chegar o mais longe que puder.
E só então arrefece e, dura,
forma escuras brechas de mulher.
ALQUIMIAS:
No princípio, o amor
começa como barro,
tomando forma
por mãos habilidosas moldado.
Depois é gelatina
instável e hesitante.
Se de repente vira cristal
é lindo, embora frágil.
Mas para o vidro durar
tem de ser revestido,
de prata por exemplo.
Pode ficar ouro com o tempo
ou apenas oxidar.
Nalguns casos (tão poucos)
o cristal vira diamante
e nada, nada o pode quebrar.
VULCÕES:
Nalguns vulcões mais activos
formam-se no interior brilhantes,
tão bonitos, tão vivos,
reflectem todas as cores
Noutros só pedras escuras,
basalto e mais nada
quando ficam duras
e a fonte de calor é roubada
ANA PINTÃO
O CHÃO DAS FLORES
No tempo em que "Era uma vez"
Ainda era todas as vezes das histórias
Uma vez houve uma hortênsia
Que colheu uma Leonor e a guardou
No cantinho mais quentinho de sua raiz,
Que, como todos sabemos, é o coração das flores
Filhas dos continentes como dos Açores.
Pois então esta flor que assim fez
Como se faz na vida uma só vez,
Guardou no seu secreto coração
Não quatro flores, duas ou três
Mas apenas uma – vês??... Pois então!
Se estava descalça, ninguém sabe
Ou se não segura ia à fonte,
Mas que era flor que na raiz cabe
Doutra flor é bem verdade,
Tão verdade, que aqui conste.
E como o fez? Quem ouviu?
Quem reconheceu tal magia?
Quem aos anjos e a Deus pediu
Poder fazer o que a flor fez um dia?!...
Do que ao mundo foi notícia
E se disse na TV e jornais,
É que além de seu pai, mãe e irmão
Houve também um alentejano torrão
Que colheu essa hortênsia
Para a plantar no seu árido chão
De onde não saiu jamais.
E aí, a flor que tinha na raiz
Uma Leonor simples e bela
Floresceu tanto, que ainda hoje se diz
Ser aquele somente o jardim dela!
No tempo em que "Era uma vez"
Ainda era todas as vezes das histórias
Uma vez houve uma hortênsia
Que colheu uma Leonor e a guardou
No cantinho mais quentinho de sua raiz,
Que, como todos sabemos, é o coração das flores
Filhas dos continentes como dos Açores.
Pois então esta flor que assim fez
Como se faz na vida uma só vez,
Guardou no seu secreto coração
Não quatro flores, duas ou três
Mas apenas uma – vês??... Pois então!
Se estava descalça, ninguém sabe
Ou se não segura ia à fonte,
Mas que era flor que na raiz cabe
Doutra flor é bem verdade,
Tão verdade, que aqui conste.
E como o fez? Quem ouviu?
Quem reconheceu tal magia?
Quem aos anjos e a Deus pediu
Poder fazer o que a flor fez um dia?!...
Do que ao mundo foi notícia
E se disse na TV e jornais,
É que além de seu pai, mãe e irmão
Houve também um alentejano torrão
Que colheu essa hortênsia
Para a plantar no seu árido chão
De onde não saiu jamais.
E aí, a flor que tinha na raiz
Uma Leonor simples e bela
Floresceu tanto, que ainda hoje se diz
Ser aquele somente o jardim dela!
8.12.2004
FANTASIA E FUGA EM SOL MAIOR
Perdoo-me esta insanidade de sentir-te
Solta sobre o meu corpo domando-o
Subjugando-o ao fogo arguto do voo
Redimensionado no táctil augúrio
Como arco-íris de Vénus em Mercúrio,
Manto azul terreno envolvendo Marte.
Mas já intemporal adormeço naufragado
Em sonhos de corromper o instante tido
Que das ondas sou sempre o outro lado
Fustigado, e nos corais de mim compartido.
Aí, a seiva que brota em espuma se desfaz...
Fui eu a rapariga, enquanto tu o cavaleiro
Que sulcando em lemes o mar todo e inteiro,
Tremes porém no imo abraço derradeiro
Ao que explodindo em ti a minha lava
De vulcão assim me (re)tornei rapaz
- E tu, a praia fértil que o (a)mar cava!
Havia silêncio no sol-pôr, depondo
A resvalada réstia dos ocasos alvorados
Astro a astro, uma sinfonia compondo
De dedilhar arcanjos amputados.
Asas? Só as que a imaginação nos dá!
Essas sim, que são seguras e verdadeiras
Não ícaras sombras do lado de lá do lá,
A fazer autênticos alqueives e sementeiras
De produzir o trigo que em nós há...
Pão de searas selvagens os corpos
Incandescentes de bem-querer a vida
Notas de solfejo na paleta colorida
Na magia simples de arrotear encontros
De eu e tu, tu e eu, do eis à flor da pele
Colhendo das pétalas a cor, e do pólen... o mel!
JC - 11.08.04
Perdoo-me esta insanidade de sentir-te
Solta sobre o meu corpo domando-o
Subjugando-o ao fogo arguto do voo
Redimensionado no táctil augúrio
Como arco-íris de Vénus em Mercúrio,
Manto azul terreno envolvendo Marte.
Mas já intemporal adormeço naufragado
Em sonhos de corromper o instante tido
Que das ondas sou sempre o outro lado
Fustigado, e nos corais de mim compartido.
Aí, a seiva que brota em espuma se desfaz...
Fui eu a rapariga, enquanto tu o cavaleiro
Que sulcando em lemes o mar todo e inteiro,
Tremes porém no imo abraço derradeiro
Ao que explodindo em ti a minha lava
De vulcão assim me (re)tornei rapaz
- E tu, a praia fértil que o (a)mar cava!
Havia silêncio no sol-pôr, depondo
A resvalada réstia dos ocasos alvorados
Astro a astro, uma sinfonia compondo
De dedilhar arcanjos amputados.
Asas? Só as que a imaginação nos dá!
Essas sim, que são seguras e verdadeiras
Não ícaras sombras do lado de lá do lá,
A fazer autênticos alqueives e sementeiras
De produzir o trigo que em nós há...
Pão de searas selvagens os corpos
Incandescentes de bem-querer a vida
Notas de solfejo na paleta colorida
Na magia simples de arrotear encontros
De eu e tu, tu e eu, do eis à flor da pele
Colhendo das pétalas a cor, e do pólen... o mel!
JC - 11.08.04
8.11.2004
PARA TE VER
para te ver
cantei, dancei, pulei
para te ouvir
esperei, pensei, fiquei
para te entender
falei, perdi, cansei
para te sentir
nada fiz,
mas senti.
o teu abraço
acalmou
o meu tremor
como nenhum antes.
o teu dar é grande
como também o teu tirar.
alguma coisa em mim
te reconhece
e alguma coisa em ti
chama por mim.
a chama que se apaga
é só o sopro do vento
a passar pela vela.
a vela fica e o pavio também
imutáveis na sua natureza
e de novo se incendeiam
com o calor do momento...
quando as coisas não surgem na vida
como se quer e espera
deixamo-nos balançar pelas ondas
e aguarda-se.
a qualquer momento vira a maré
e lança-nos nas mãos
um búzio encantado
com o som que nos transporta
ANA PINTÃO
(11-09-03 - 3:31 da manhã)
CIÚME
Tenho ciúmes
Das sereias do mar
Das enguias do rio
Das estrelas do céu
Do vento a soprar
Da luz que te roça
E da terra inteira
Que te abraça
Tenho ciúmes
Das gentes e das outras
Das mesmas e das novas
Do que pensas e dizes
Daquilo que irás fazer
Ás vezes, no engano
Do amor que eu queria,
Até de mim própria...
ANA PINTÃO
(14.02.04 - 4 da manhã)
para te ver
cantei, dancei, pulei
para te ouvir
esperei, pensei, fiquei
para te entender
falei, perdi, cansei
para te sentir
nada fiz,
mas senti.
o teu abraço
acalmou
o meu tremor
como nenhum antes.
o teu dar é grande
como também o teu tirar.
alguma coisa em mim
te reconhece
e alguma coisa em ti
chama por mim.
a chama que se apaga
é só o sopro do vento
a passar pela vela.
a vela fica e o pavio também
imutáveis na sua natureza
e de novo se incendeiam
com o calor do momento...
quando as coisas não surgem na vida
como se quer e espera
deixamo-nos balançar pelas ondas
e aguarda-se.
a qualquer momento vira a maré
e lança-nos nas mãos
um búzio encantado
com o som que nos transporta
ANA PINTÃO
(11-09-03 - 3:31 da manhã)
CIÚME
Tenho ciúmes
Das sereias do mar
Das enguias do rio
Das estrelas do céu
Do vento a soprar
Da luz que te roça
E da terra inteira
Que te abraça
Tenho ciúmes
Das gentes e das outras
Das mesmas e das novas
Do que pensas e dizes
Daquilo que irás fazer
Ás vezes, no engano
Do amor que eu queria,
Até de mim própria...
ANA PINTÃO
(14.02.04 - 4 da manhã)
8.09.2004
Eis um dos contos de proposta para a próxima Comunidade de Leitores. Digam de vossa justiça, sobretudo a data e hora em que a devemos organizar.
Abrações
A ESFINGE SEM SEGREDO
por Oscar Wilde
UMA ÁGUA FORTE
Achava-me numa tarde sentado no terraço do Café Paz, contemplando o fausto e a pobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto bebericava o meu vermute, sobre o estranho panorama de orgulho e miséria que desfilava diante de mim, quando ouvi alguém pronunciar o meu nome. Voltei-me e dei com os olhos em Lord Murchison. Não nos tínhamos tornado a ver desde que estivéramos juntos no colégio, havia isto uns dez anos, de modo que encheu-me de satisfação aquele encontro e apertamos as mãos cordialmente. Tínhamos sido grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Era tão bonito, tão comunicativo, tão cavalheiresco. Costumávamos dizer dele que seria o melhor dos sujeitos, se não falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, o admirávamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito mudado. Parecia inquieto, perturbado e em dúvida a respeito de alguma coisa. Senti que não podia ser o cepticismo moderno, pois Murchison era um dos conservadores mais inabaláveis e acreditava no Pentateuco com a mesma firmeza com que acreditava na Câmara dos Pares. De modo que conclui que havia alguma mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda não se havia casado.
- Não compreendo as mulheres bastante bem - respondeu.
- Meu caro Geraldo - disse -, as mulheres estão feitas para serem amadas e não para serem compreendidas.
- Não posso amar sem ter confiança absoluta - replicou.
- Creio que há um mistério na sua vida, Geraldo - exclamei. - Conte-me isso.
- Vamos dar um passeio de carro - respondeu. - Há gente demais aqui. Esse carro amarelo, não. Um de qualquer outra cor... aquele ali, verde escuro serve.
Dentro de poucos minutos estávamos a descer a trote o bulevar na direcção da Madalena.
- Para onde vamos? - perguntei.
- Oh! para onde você quiser! - respondeu. - Para o restaurante do Bosque. Jantaremos ali e contar-me-á tudo a respeito da sua vida.
- Primeiro quero que você me conte a sua. Revele-me o seu mistério.
Tirou do bolso uma pequena carteira de marroquim com fecho de prata e entregou-ma. Abri-a. Dentro havia a fotografia de uma mulher. Era alta e esbelta e de aspecto singular com grandes olhos misteriosos e cabelos soltos. Parecia uma clairvoyante (1) e achava-se envolta em ricas peles.
- Qual é a sua opinião a respeito desse rosto - perguntou ele. - Inspira confiança?
Examinei o retrato atentamente. Parecia-me o rosto de alguém que guarda um segredo, mas o que não podia dizer era se o segredo fosse bom ou mau. Aquela beleza parecia feita de muitos mistérios reunidos, uma beleza, de facto, mais psicológica do que plástica, e o ligeiro sorriso que lhe flutuava nos lábios era demasiado subtil para ter realmente encanto.
- Bem - exclamou ele, impaciente - que me diz?
- É a Gioconda em vestes de luto - respondi. - Conte-me tudo quanto a ela se refere.
- Agora não; depois do jantar - disse ele e começou a conversar a respeito de outras coisas.
Quando o empregado trouxe o nosso café e os cigarros, lembrei a Geraldo a sua promessa. Ele levantou-se da sua cadeira, caminhou duas ou três vezes acima e abaixo na sala e, deixando-se cair numa cadeira de braços, contou-me a seguinte história:
- Uma tarde, aí pelas cinco horas, descia eu pela Rua Bond. Havia uma terrível aglomeração de veículos e o tráfego quase parado. Perto do passeio estava parado um carrinho fechado, amarelo, que, por esse ou aquele motivo, atraiu a minha atenção. Ao passar ao seu lado, vi surgir dele, a olhar para fora, o rosto que lhe mostrei ainda há pouco. Fascinou-me imediatamente. Fiquei a noite inteira a pensar nele e o dia seguinte também. Subi e desci várias vezes por entre aquela maldita confusão, lançando um olhar perscrutador para dentro de todo carro, à espera do carro fechado amarelo. Mas não pude descobrir ma belle inconnue (2) e afinal comecei a pensar que era ela apenas um sonho. Cerca de uma semana depois, estava a jantar com Madame de Rastail. O jantar estava marcado para as oito horas, mas às oito e meia ainda nos achávamos à espera na sala de visitas. Por fim o criado abriu a porta e anunciou Lady Alroy. Era a mulher que eu estivera a procurar. Entrou muito devagar, parecendo um raio de lua cercado de renda cinzenta, e, para intenso deleite meu, pediram-me que a conduzisse à sala de jantar. Depois de nos sentarmos, observei-lhe com a maior inocência:
«Creio que já a vi, há algum tempo, na Rua Bond, Lady Alroy».
Ela ficou muito pálida e disse-me, em voz baixa:
«Por favor, não fale tão alto. Podem ouvi-lo».
Senti-me desditosíssimo por ter começado tão mal e mergulhei cegamente numa dissertação sobre peças francesas. Ela falava pouquíssimo, sempre com a mesma voz baixa e musical, parecendo receosa de que alguém a estivesse escutando. Senti-me apaixonadamente, estupidamente enamorado e a indefinível atmosfera de mistério que a cercava excitava, a mais não poder, a minha curiosidade. Quando ela se retirou, logo após o jantar, perguntei-lhe se poderia visitá-la. Hesitou um momento, olhou em redor para ver se alguém estava perto de nós e depois disse:
«Sim; amanhã a um quarto para as cinco».
Roguei a Madame de Rastail que me desse informações a respeito dela; mas tudo quanto pude saber é que era uma viúva, morando numa bela casa em Park Lane e, como naquele momento um desses cientistas cacetes começasse uma dissertação a respeito de viúvas, para exemplificar a sobrevivência dos matrimonialmente mais ajustados, despedi-me e fui para casa.
No dia seguinte cheguei pontualmente a Park Lane, no momento exacto, mas o mordomo disse-me que Lady Alroy tinha acabado de sair. Dirigi-me ao clube, bastante desiludido e confuso e, depois de muito reflectir, escrevi-lhe uma carta, perguntando-lhe se me seria permitido tentar a sorte em alguma outra parte. Por vários dias não recebi resposta, mas afinal chegou-me às mãos um bilhetinho, dizendo-me que estaria ela em casa no domingo, às quatro e com este extraordinário pós-escrito: «Por obséquio não torne a escrever para mim aqui; explicar-lhe-ei, quando o vir». No domingo, recebeu-me e mostrou-se perfeitamente encantadora. Mas quando me despedia, pediu-me que, se alguma vez tivesse ocasião de escrever-lhe de novo, dirigisse a minha carta para «Sra. Knox, aos cuidados da Biblioteca Whittaker, Rua Verde». «Há motivos - disse ela - pelos quais não posso receber cartas em minha própria casa».
Durante toda a temporada via-a amiudadas vezes e a atmosfera de mistério sempre se manteve em torno dela. Às vezes pensava que se achava ela em poder de algum homem, mas parecia tão inabordável que não podia acreditar naquilo. Era realmente difícil para mim chegar a qualquer conclusão, pois ela era como um desses estranhos cristais que a gente vê em museus e que são, num momento, claros, e em outro, turvos. Por fim, decidi-me a pedi-la em casamento. Senti-me doente e cansado daquele incessante segredo que impunha a todas as minhas visitas e às poucas cartas que lhe enviei. Escrevi-lhe para a biblioteca, perguntando-lhe se podia ver-me na segunda-feira seguinte, às seis horas. Respondeu que sim e senti-me transportado ao sétimo céu. Estava apaixonado por ela, a despeito do mistério, pensava então... em consequência dele, vejo agora. Não; era a mulher mesma que eu amava. O mistério perturbava-me, enlouquecia-me. Porque o acaso fez-me descobrir a pista?
- Descobriu-a então? - exclamei.
- Receio que sim - respondeu. - Julgue você por si mesmo. Quando chegou a segunda-feira, fui almoçar com meu tio e cerca das quatro horas encontrava-me em Marylebone Road. Meu tio, como você sabe, mora em Regent's Park. Queria alcançar Piccadilly e, para atalhar, meti-me por uma enfiada de becos miseráveis. De repente avistei à minha frente Lady Alroy, com um espesso véu e caminhando muito apressada. Ao chegar à derradeira casa da rua, subiu os degraus, tirou do bolso uma chave, abriu a porta e entrou. «Aqui está o mistério», disse a mim mesmo e apressei-me em examinar a casa. Parecia uma espécie de prédio de aluguer. No degrau da porta estava caído o lenço dela. Apanhei-o e meti-o no bolso. Depois comecei a reflectir no que devia fazer. Cheguei à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la. Tomei um carro e segui para o clube. Às seis horas fui visitá-la. Estava sentada num sofá, em traje de chá, um tecido prateado, preso por uns broches de certas estranhas pedras lunares que sempre usava. Era de uma beleza perfeita.
«Alegra-me tanto vê-lo - disse. - Não saí hoje durante o dia».
Olhei para ela, estupefacto e tirando o lenço do meu bolso, entreguei-lho.
«Deixou cair isto esta tarde, Lady Alroy, na Rua Cumnor» - disse eu, calmamente.
Ela olhou para mim, aterrorizada, mas não fez o menor gesto para pegar no lenço.
«Que estava a fazer ali?» - perguntei.
«Que direito tem o senhor de fazer-me perguntas?» - replicou.
«O direito de um homem que a ama» - respondi-lhe. - «Vim aqui para pedi-la em casamento».
Ocultou o rosto nas mãos e desfez-se em pranto.
«Tem de responder-me» - continuei.
Ela ergueu-se e, fitando-me o rosto, disse:
«Lorde Murchison, nada tenho a dizer-lhe».
«Foi encontrar alguém» - exclamei. - «É esse o seu mistério».
Ela ficou terrivelmente pálida e disse:
«Não fui encontrar ninguém».
«Não pode dizer a verdade?» - exclamei.
«Já a disse» - replicou ela.
Eu estava a enlouquecer, alucinado. Não sei o que disse, mas foram coisas terríveis. Por fim, saí à pressa da casa. Escreveu-me uma carta no dia seguinte. Devolvi-lha, intacta e parti para a Noruega, em companhia de Alan Colville. Um mês depois regressei e a primeira coisa que vi no Morning Post foi a notícia da morte de Lady Alroy. Apanhara um resfriado na Ópera e morrera, dentro de cinco dias, de congestão pulmonar. Fechei-me em casa e não quis ver ninguém. Tinha-a amado tanto, tinha-a amado tão loucamente! Meu Deus! Quanto amara eu aquela mulher!
- E você, foi àquela rua, àquela casa? - perguntei.
- Sim - respondeu.
- Um dia, fui à Rua Cumnor. Não podia deixar de fazê-lo. Vivia torturado pela dúvida. Bati à porta e uma mulher de aspecto respeitável abriu-a para mim. Perguntei-lhe se havia quartos para alugar.
«Bem, meu senhor - respondeu ela - as salas podem ser alugadas, mas há três meses que não tenho visto a senhora e como os alugueres estão-se a acumular, o senhor poderá alugá-las».
«É esta a senhora?» - perguntei, mostrando-lhe a fotografia.
«É ela, sim, com toda certeza» - exclamou a mulher. - «E quando estará de volta, meu senhor?»
«Morreu» - respondi.
«Oh! meu senhor, não diga!» - disse a mulher. - «Era a minha melhor inquilina. Pagava-me três guinéus por semana simplesmente para vir sentar-se nesta minha sala de vez em quando».
«Encontrava-se com alguém aqui?» - perguntei, mas a mulher garantiu-me que tal não ocorria, que ela sempre vinha sozinha e não via ninguém.
«Mas afinal que fazia ela aqui?» - exclamei.
«Ficava simplesmente sentada na sala, meu senhor, lendo livros e às vezes tomava chá» - respondeu a mulher.
Não sabia o que dizer, de modo que lhe dei um soberano e saí. Agora, que pensa que significava tudo aquilo? Não acredita que a mulher estivesse a dizer a verdade?
- Acredito.
- Então por que ia Lady Alroy ali?
- Meu caro Geraldo - respondi - Lady Alroy era simplesmente uma mulher com a mania do mistério. Alugava aqueles quartos somente pelo prazer de ir ali, de véu descido e imaginando ser uma heroína. Tinha paixão pelo segredo, mas não passava de uma simples esfinge sem segredo.
- Estou convencido disto - repliquei.
Lorde Murchison tirou do bolso a carteira de marroquim, abriu-a e olhou a fotografia.
Quem sabe? - disse afinal.
Notas:
1 vidente
2 Minha bela desconhecida
Abrações
A ESFINGE SEM SEGREDO
por Oscar Wilde
UMA ÁGUA FORTE
Achava-me numa tarde sentado no terraço do Café Paz, contemplando o fausto e a pobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto bebericava o meu vermute, sobre o estranho panorama de orgulho e miséria que desfilava diante de mim, quando ouvi alguém pronunciar o meu nome. Voltei-me e dei com os olhos em Lord Murchison. Não nos tínhamos tornado a ver desde que estivéramos juntos no colégio, havia isto uns dez anos, de modo que encheu-me de satisfação aquele encontro e apertamos as mãos cordialmente. Tínhamos sido grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Era tão bonito, tão comunicativo, tão cavalheiresco. Costumávamos dizer dele que seria o melhor dos sujeitos, se não falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, o admirávamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito mudado. Parecia inquieto, perturbado e em dúvida a respeito de alguma coisa. Senti que não podia ser o cepticismo moderno, pois Murchison era um dos conservadores mais inabaláveis e acreditava no Pentateuco com a mesma firmeza com que acreditava na Câmara dos Pares. De modo que conclui que havia alguma mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda não se havia casado.
- Não compreendo as mulheres bastante bem - respondeu.
- Meu caro Geraldo - disse -, as mulheres estão feitas para serem amadas e não para serem compreendidas.
- Não posso amar sem ter confiança absoluta - replicou.
- Creio que há um mistério na sua vida, Geraldo - exclamei. - Conte-me isso.
- Vamos dar um passeio de carro - respondeu. - Há gente demais aqui. Esse carro amarelo, não. Um de qualquer outra cor... aquele ali, verde escuro serve.
Dentro de poucos minutos estávamos a descer a trote o bulevar na direcção da Madalena.
- Para onde vamos? - perguntei.
- Oh! para onde você quiser! - respondeu. - Para o restaurante do Bosque. Jantaremos ali e contar-me-á tudo a respeito da sua vida.
- Primeiro quero que você me conte a sua. Revele-me o seu mistério.
Tirou do bolso uma pequena carteira de marroquim com fecho de prata e entregou-ma. Abri-a. Dentro havia a fotografia de uma mulher. Era alta e esbelta e de aspecto singular com grandes olhos misteriosos e cabelos soltos. Parecia uma clairvoyante (1) e achava-se envolta em ricas peles.
- Qual é a sua opinião a respeito desse rosto - perguntou ele. - Inspira confiança?
Examinei o retrato atentamente. Parecia-me o rosto de alguém que guarda um segredo, mas o que não podia dizer era se o segredo fosse bom ou mau. Aquela beleza parecia feita de muitos mistérios reunidos, uma beleza, de facto, mais psicológica do que plástica, e o ligeiro sorriso que lhe flutuava nos lábios era demasiado subtil para ter realmente encanto.
- Bem - exclamou ele, impaciente - que me diz?
- É a Gioconda em vestes de luto - respondi. - Conte-me tudo quanto a ela se refere.
- Agora não; depois do jantar - disse ele e começou a conversar a respeito de outras coisas.
Quando o empregado trouxe o nosso café e os cigarros, lembrei a Geraldo a sua promessa. Ele levantou-se da sua cadeira, caminhou duas ou três vezes acima e abaixo na sala e, deixando-se cair numa cadeira de braços, contou-me a seguinte história:
- Uma tarde, aí pelas cinco horas, descia eu pela Rua Bond. Havia uma terrível aglomeração de veículos e o tráfego quase parado. Perto do passeio estava parado um carrinho fechado, amarelo, que, por esse ou aquele motivo, atraiu a minha atenção. Ao passar ao seu lado, vi surgir dele, a olhar para fora, o rosto que lhe mostrei ainda há pouco. Fascinou-me imediatamente. Fiquei a noite inteira a pensar nele e o dia seguinte também. Subi e desci várias vezes por entre aquela maldita confusão, lançando um olhar perscrutador para dentro de todo carro, à espera do carro fechado amarelo. Mas não pude descobrir ma belle inconnue (2) e afinal comecei a pensar que era ela apenas um sonho. Cerca de uma semana depois, estava a jantar com Madame de Rastail. O jantar estava marcado para as oito horas, mas às oito e meia ainda nos achávamos à espera na sala de visitas. Por fim o criado abriu a porta e anunciou Lady Alroy. Era a mulher que eu estivera a procurar. Entrou muito devagar, parecendo um raio de lua cercado de renda cinzenta, e, para intenso deleite meu, pediram-me que a conduzisse à sala de jantar. Depois de nos sentarmos, observei-lhe com a maior inocência:
«Creio que já a vi, há algum tempo, na Rua Bond, Lady Alroy».
Ela ficou muito pálida e disse-me, em voz baixa:
«Por favor, não fale tão alto. Podem ouvi-lo».
Senti-me desditosíssimo por ter começado tão mal e mergulhei cegamente numa dissertação sobre peças francesas. Ela falava pouquíssimo, sempre com a mesma voz baixa e musical, parecendo receosa de que alguém a estivesse escutando. Senti-me apaixonadamente, estupidamente enamorado e a indefinível atmosfera de mistério que a cercava excitava, a mais não poder, a minha curiosidade. Quando ela se retirou, logo após o jantar, perguntei-lhe se poderia visitá-la. Hesitou um momento, olhou em redor para ver se alguém estava perto de nós e depois disse:
«Sim; amanhã a um quarto para as cinco».
Roguei a Madame de Rastail que me desse informações a respeito dela; mas tudo quanto pude saber é que era uma viúva, morando numa bela casa em Park Lane e, como naquele momento um desses cientistas cacetes começasse uma dissertação a respeito de viúvas, para exemplificar a sobrevivência dos matrimonialmente mais ajustados, despedi-me e fui para casa.
No dia seguinte cheguei pontualmente a Park Lane, no momento exacto, mas o mordomo disse-me que Lady Alroy tinha acabado de sair. Dirigi-me ao clube, bastante desiludido e confuso e, depois de muito reflectir, escrevi-lhe uma carta, perguntando-lhe se me seria permitido tentar a sorte em alguma outra parte. Por vários dias não recebi resposta, mas afinal chegou-me às mãos um bilhetinho, dizendo-me que estaria ela em casa no domingo, às quatro e com este extraordinário pós-escrito: «Por obséquio não torne a escrever para mim aqui; explicar-lhe-ei, quando o vir». No domingo, recebeu-me e mostrou-se perfeitamente encantadora. Mas quando me despedia, pediu-me que, se alguma vez tivesse ocasião de escrever-lhe de novo, dirigisse a minha carta para «Sra. Knox, aos cuidados da Biblioteca Whittaker, Rua Verde». «Há motivos - disse ela - pelos quais não posso receber cartas em minha própria casa».
Durante toda a temporada via-a amiudadas vezes e a atmosfera de mistério sempre se manteve em torno dela. Às vezes pensava que se achava ela em poder de algum homem, mas parecia tão inabordável que não podia acreditar naquilo. Era realmente difícil para mim chegar a qualquer conclusão, pois ela era como um desses estranhos cristais que a gente vê em museus e que são, num momento, claros, e em outro, turvos. Por fim, decidi-me a pedi-la em casamento. Senti-me doente e cansado daquele incessante segredo que impunha a todas as minhas visitas e às poucas cartas que lhe enviei. Escrevi-lhe para a biblioteca, perguntando-lhe se podia ver-me na segunda-feira seguinte, às seis horas. Respondeu que sim e senti-me transportado ao sétimo céu. Estava apaixonado por ela, a despeito do mistério, pensava então... em consequência dele, vejo agora. Não; era a mulher mesma que eu amava. O mistério perturbava-me, enlouquecia-me. Porque o acaso fez-me descobrir a pista?
- Descobriu-a então? - exclamei.
- Receio que sim - respondeu. - Julgue você por si mesmo. Quando chegou a segunda-feira, fui almoçar com meu tio e cerca das quatro horas encontrava-me em Marylebone Road. Meu tio, como você sabe, mora em Regent's Park. Queria alcançar Piccadilly e, para atalhar, meti-me por uma enfiada de becos miseráveis. De repente avistei à minha frente Lady Alroy, com um espesso véu e caminhando muito apressada. Ao chegar à derradeira casa da rua, subiu os degraus, tirou do bolso uma chave, abriu a porta e entrou. «Aqui está o mistério», disse a mim mesmo e apressei-me em examinar a casa. Parecia uma espécie de prédio de aluguer. No degrau da porta estava caído o lenço dela. Apanhei-o e meti-o no bolso. Depois comecei a reflectir no que devia fazer. Cheguei à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la. Tomei um carro e segui para o clube. Às seis horas fui visitá-la. Estava sentada num sofá, em traje de chá, um tecido prateado, preso por uns broches de certas estranhas pedras lunares que sempre usava. Era de uma beleza perfeita.
«Alegra-me tanto vê-lo - disse. - Não saí hoje durante o dia».
Olhei para ela, estupefacto e tirando o lenço do meu bolso, entreguei-lho.
«Deixou cair isto esta tarde, Lady Alroy, na Rua Cumnor» - disse eu, calmamente.
Ela olhou para mim, aterrorizada, mas não fez o menor gesto para pegar no lenço.
«Que estava a fazer ali?» - perguntei.
«Que direito tem o senhor de fazer-me perguntas?» - replicou.
«O direito de um homem que a ama» - respondi-lhe. - «Vim aqui para pedi-la em casamento».
Ocultou o rosto nas mãos e desfez-se em pranto.
«Tem de responder-me» - continuei.
Ela ergueu-se e, fitando-me o rosto, disse:
«Lorde Murchison, nada tenho a dizer-lhe».
«Foi encontrar alguém» - exclamei. - «É esse o seu mistério».
Ela ficou terrivelmente pálida e disse:
«Não fui encontrar ninguém».
«Não pode dizer a verdade?» - exclamei.
«Já a disse» - replicou ela.
Eu estava a enlouquecer, alucinado. Não sei o que disse, mas foram coisas terríveis. Por fim, saí à pressa da casa. Escreveu-me uma carta no dia seguinte. Devolvi-lha, intacta e parti para a Noruega, em companhia de Alan Colville. Um mês depois regressei e a primeira coisa que vi no Morning Post foi a notícia da morte de Lady Alroy. Apanhara um resfriado na Ópera e morrera, dentro de cinco dias, de congestão pulmonar. Fechei-me em casa e não quis ver ninguém. Tinha-a amado tanto, tinha-a amado tão loucamente! Meu Deus! Quanto amara eu aquela mulher!
- E você, foi àquela rua, àquela casa? - perguntei.
- Sim - respondeu.
- Um dia, fui à Rua Cumnor. Não podia deixar de fazê-lo. Vivia torturado pela dúvida. Bati à porta e uma mulher de aspecto respeitável abriu-a para mim. Perguntei-lhe se havia quartos para alugar.
«Bem, meu senhor - respondeu ela - as salas podem ser alugadas, mas há três meses que não tenho visto a senhora e como os alugueres estão-se a acumular, o senhor poderá alugá-las».
«É esta a senhora?» - perguntei, mostrando-lhe a fotografia.
«É ela, sim, com toda certeza» - exclamou a mulher. - «E quando estará de volta, meu senhor?»
«Morreu» - respondi.
«Oh! meu senhor, não diga!» - disse a mulher. - «Era a minha melhor inquilina. Pagava-me três guinéus por semana simplesmente para vir sentar-se nesta minha sala de vez em quando».
«Encontrava-se com alguém aqui?» - perguntei, mas a mulher garantiu-me que tal não ocorria, que ela sempre vinha sozinha e não via ninguém.
«Mas afinal que fazia ela aqui?» - exclamei.
«Ficava simplesmente sentada na sala, meu senhor, lendo livros e às vezes tomava chá» - respondeu a mulher.
Não sabia o que dizer, de modo que lhe dei um soberano e saí. Agora, que pensa que significava tudo aquilo? Não acredita que a mulher estivesse a dizer a verdade?
- Acredito.
- Então por que ia Lady Alroy ali?
- Meu caro Geraldo - respondi - Lady Alroy era simplesmente uma mulher com a mania do mistério. Alugava aqueles quartos somente pelo prazer de ir ali, de véu descido e imaginando ser uma heroína. Tinha paixão pelo segredo, mas não passava de uma simples esfinge sem segredo.
- Estou convencido disto - repliquei.
Lorde Murchison tirou do bolso a carteira de marroquim, abriu-a e olhou a fotografia.
Quem sabe? - disse afinal.
Notas:
1 vidente
2 Minha bela desconhecida
8.03.2004
Pessoal: Que tal fazer uma sessão este mês da Comunidade de Leitores, a fim de aproveitar a presença, em férias, de alguns dos nossos elementos que nos acompanham à distância nas leituras? Conhecíamo-nos, trocávamos figurinhas e leituras, estabelecíamos paralelo com o que se anda a ler lá pelas estranjas e fazíamos o balanço da nossa actividade. De acordo? Pois bem, aventem as vossas sugestões prò mail de serviço. Vamos a isso, que o tempo urge!
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