4.30.2005

The Lefthanded Woman

Ela saiu com outras de uma boca de metro
Comeu de pé com outras num snack-bar
Ficou com outras sentada numa lavandaria
Mas vi-a uma vez sozinha em frente ao quiosque dos jornais.

Ela saiu com outras de um escritório ou escola privada
E no meio de outros a vi carregada de sacos de plásticos num domingo
À tarde vinda do hipermercado ou sentada na esplanada do Parque
Como entre as demais assistindo no polivalente a um jogo de andebol.

Só que também a vi uma vez através da janela a jogar xadrez sozinha
E a ler deitada na relva do jardim mordiscando bolachas de água e sal.

Sei que sabe rir-se a propósito no cinema e café, ou mesmo sorrir de coquete
Quando os taxistas metem conversa mole e ser simpática pràs senhoras
Dos cães balofos que lambem o resto dos pacotes de açúcar das donas.
Que dançou e gargalhou na casa de espelhos côncavos e convexos da feira
E até gritou possessa na montanha mágica, os cabelos arrepelados para trás
As mãos aperradas no tubo metálico da trancada segurança – sei e soube, sim.

Mas depois de saber isso voltei a vê-la sozinha, embora que nos meus sonhos
E hoje deixei a minha casa aberta. Também esqueci o telefone fora do descanso
Ou se não está e toca atendo ao contrário e falo para o auscultador, às avessas
O lápis à esquerda do caderno mesmo ao pé da chávena de chá com duas asas
E muito próximo uma maçã com a casca tirada em volta (mas não até ao fim…)
As cortinas levantadas só do lado esquerdo, a chave da porta no bolso sempre
Do mesmo lado, a tilintar esquerdamente, a bater quando o tacão pisa o asfalto.

Pensei que isso fosse um sinal teu, uma espécie de notícia da região estranha
Ou então que acabaria por reconhecer que tal era natural numa canhota.
Supus naturalidade ainda que me surpreendesse cada vez que te via sozinha
Como se constatasse que qualquer coisa parecia errado nesse quadro
Que havia ali um anacronismo irreparável, entontecedor, rodopiante, vertiginoso.

Finalmente, quando já não sabia onde ela acaba e tu começavas, ponto confuso
De porto sem abrigo, nem onde tu feneces e ela estremece, cruzada aberta
De gume solto, peguei na faca pelo corte e apertei para lembrar-me de algo
Assim firme e único e aglutinante e assombroso como o conselho que te dei:
“Essa coisa canhota de ver o mundo às avessas, ainda nos traz complicações…”
E trouxe. Muitas. Agora, vê tu, sou eu quem me vejo sozinho onde tu passavas!

GAVETA IN CÓMODA

Guardo-me na saudade de ti
E fecho-me como um livro aberto
Que o amor, mesmo hoje é aqui
Teu rosto num beijo certo...
O melhor sonho que acordado vivi
Na distância do desejo tão perto!



VIII ANTOLOGIA DO CÍRCULO NACIONAL D'ARTE E POESIA
Edição 2005
Capa mole, 144 págs.


Com lançamento previsto para o dia 6 de Abril, às 18 horas, na Sociedade de Língua Portuguesa, que terá contudo a sua apresentação pública para o Alentejo, em Arronches, durante a Feira de Artesanato e Gastronomia desta localidade, a VIII Antologia do Círculo Nacional d'Arte e Poesia, com coordenação e prefácio de Maria Olívia Diniz Sampaio, tem representados vários poetas alentejanos, de entre os quais podemos salientar os portalegrenses Daniela Alice Proença Lopes, Joaquina Alegria e Joaquina da Conceição Martins Semedo (Urra), José Garção Ribeiro Branquinho (Ribeira de Nisa) e Maria Isabel Realinho Corte Real, mais conhecida pelo pseudónimo Marisa, embora sejam igualmente dignas de destaque as participações dos demais poetas do nosso distrito tal como Catarina Malanho Semedo (Fronteira), Dora Morgado (Assumar), Emílio Moitas (Mosteiros/Arronches), Francisco Carita Mata e Teresa Ferreira Belo (Aldeia da Mata), Francisco Manuel Matos Serra (Monforte), João Metelo Grazina - ou Poeta Jodro - (Alterdo Chão), José António das Dores Botelheiro (Porto da Espada/Marvão), Maria de Lurdes Almeida (Campo Maior) e Natália Parelho Fernandes (Torre das Vargens). E de salientar, não somente por serem gente da nossa gente, mas também pela elevada qualidade, dentro da excelsa e simples beleza desta antologia, com que divulgam o pensamento e as temáticas das nossas comuns inquietações existenciais. Porque, essencialmente, como aliás é afirmado por Joaquina Alegria numa das suas quadras de índole popular, o pensar é um sentir que nos ata à comunidade em que nos inserimos, pois igualmente "Comigo acontece assim / Mas não me afecta a razão / O que penso para mim / Logo gravo no coração".
A mancha gráfica e montagem foram da responsabilidade da Gráfica Guedelha, empresa sediada nesta cidade, e a capa de Lúcia Lupenny, com desenhos de Chagas Ramos e Eduarda Ribeiro, enquanto contributos para uma notória mais valia, de um livro que regista e subscreve o pulsar das letras lusófonas.



Mousinho de Albuquerque
António Ventura

Editora Planeta DeAgostini
Col. Grandes Protagonistas da História de Portugal
Capa dura,192 páginas, em papel reciclado

Eis um livro reconfortante!
Embora seja indiscutível que aqueles que melhor compreendem o mundo mais chances têm de nele sobreviver, ou que se Deus escreve direito por linhas tortas na política e na justiça se costuma escrever torto por alíneas do direito, como da glória à ingratidão vai um passo de anão, este livro de António Ventura, autor portalegrense director da memorável revista A CIDADE, licenciado em História (1984), Mestre em História Contemporânea (1988), Doutor em Letras (História Contemporânea) pela Universidade de Lisboa, Professor do Departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa e Equiparado a Professor Coordenador da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Portalegre, colaborador das revistas Clio e História, mas que outrora também foi docente das Escolas Mouzinho da Silveira e São Lourenço, em Portalegre, como da Escola Preparatória de Arronches, que esteve ligado às exposições "comemorativa do centenário do nascimento de Emílio Costa" (1977), "Portalegre - Homens e Livros" (1980), "Retrospectiva da Imprensa de Portalegre" (1981) e "Portalegre no Século XVIII" (1983), colaborador da imprensa regional, nomeadamente da A Rabeca, Fonte Nova, O Distrito de Portalegre, Notícias de Elvas, Diário do Alentejo, ou ainda da nacional, em títulos sobejamente conhecidos como Seara Nova, Diário Popular, O Ponto, Diário de Notícias, Diário de Lisboa, etc., vem confirmar a clareza, rigor, correcção e harmonia discursiva a que nos habituara desde o primeiro livro publicado em 1976, intitulado Bento Gonçalves, Escritos (1927-30), e profusamente disseminado pelos demais do género (v.g. D. Francisco Bravo / Bispo de Portalegre, Edições "O Semeador", em 1981; José Frederico Laranjo, ed. Assembleia Distrital de Portalegre - 1984; Eusébio Leão, ed. Câmara Municipal de Gavião - 1991; Teófilo Junior, ed. Câmara Municipal de Arronches - 1991; Joaquim Vermelho, ed. Câmara Municipal de Estremoz / Edições Colibri - 2003; Feliciano Falcão, ed. Câmara Municipal de Portalegre / Edições Colibri - 2003), além de contar-nos a História de Portugal através da caracterização e biografia dos seus intérpretes, à semelhança do efectuado por outro nome da nossa portugalidade, igualmente exímio no retratar e recriação contemporânea embora que menos austero e disciplinado na narrativa: Oliveira Martins - acerca do qual, Moniz Barreto terá afirmado que "retrata tão bem o fundador do jesuitismo, como o filho da lavadeira". Aliás, garantindo mais: que embora sendo nos retratos que ele triunfa, como se podem ver dependurados em todos os cantos da sua obra, vastos como quadros ou concisos como medalhas, "se ordenasse e concentrasse, o efeito seria fulminante e a crítica batida recuaria até à admiração".
Descodificar os compostos sociais através do desenho dos caracteres, cenários interiores, naturais, políticos e conjunturais, acções, sentimentos e valores que alinhavaram a "alma" das individualidades históricas, ou daqueles que tornaram o momento que viviam num impulso determinante para a bandeirada do futuro dos seus compatriotas, é uma tarefa assaz difícil, para a qual a prática e pesquisa de inúmeros anos muito pouco pode ajudar se se não estiver também apetrechado duma grande flexibilidade vocabular e excelsa empatia, porquanto cada um desses protagonistas além de ser caso único é igualmente meritório de tratamento especial. E Mousinho de Albuquerque, o herói de Chaimite, que subjugou os Vátuas, primeiro aprisionando o rebelde e insubmisso régulo Gungunhanha e depois matando o seu seguidor Maguiguana, cuja saga das campanhas moçambicanas culmina em gloriosa apoteose de reconhecimento e prestígio quer do povo português, como dos seus governantes ou dos seus similares europeus, no que é utilizado diplomaticamente para sanar algumas quezílias com países igualmente interessados em África (França, Grã-Bretanha, Alemanha, Prússia), mas cuja influência não foi suficiente para aplacar a mediocridade política do corporativismo partidário português que o levou ao suicídio, após o ter desmoralizado perante o povo como aos olhos dos seus soberanos, posto que sendo aio do príncipe Filipe é-lhe aviltado um affaire com a rainha D. Amélia, está nessa linha de personalidades a quem as dificuldades de caracterização apenas são desafiadoras para os que, como o autor deste livro, não temem enveredar numa actuação que ultrapassa a mera produção livresca, atinge as raízes sociais da cultura, se escora numa necessidade de investigar nascida da acção concreta e da capacidade de intervenção sobre a realidade cultural envolvente, ou de quem já era historiador ainda antes de cursar História, como o espelhou José Martins dos Santos Conde, em 1985, num artigo tornado público pelo então semanário Fonte Nova.
E reconfortante por três motivos: primeiro, porque é imprescindível que se reconheça como obras desta qualidade nada ganham em ser impressas noutros países da CE, ao caso em Espanha onde este o foi (Rotapapel, S.L., Móstoles - Madrid), visto que o aprimorar dos acabamentos, mais precisamente da justificação do texto, lhes acrescenta alguns busilis desnecessários na divisão silábica, que as entorpecem e levam o leitor a trepidar, perante os quais os autores, além de alheios, são manifesta, por mor da distância, e absolutamente impotentes. Segundo, porque nele se demonstra que o génio e instinto, formação e ética, raramente são suficientes para romper a teia dos corruptos e maldizentes ao abrigo da lei, das panelinhas do poder, dos tições económicos incendiados com que os empestados emocionais da percepção motivada tentam fustigar e destruir a dignidade, a moral e os feitos dos homens de bem, os autênticos e solitários que não temem dizer que um boi é um boi, quando de algum boi em realidade se trata, nem de uma rã que rã é, quando outra coisa não se avizinha que seja; como não bastaram a Mousinho de Albuquerque que condenado ao suicídio lhe sucumbiu, não obstante ter vencido demais perigos e guerras esforçadas, embora dos arregimentados causadores da sua desgraça a História não registe outro epitáfio além das datas de nascimento e morte, perdidas em qualquer livro de registos apodrecido sob o musgo dos tempos. E em terceiro lugar, porque permite que os homens de boa fé de outras épocas reproduzam e aprendam com o exemplo daqueles que por obras valorosas se foram da lei da morte libertando, bem como fazer alinhar um português - o seu autor -,na senda das grandes editoras europeias, mas não só português, como igualmente alentejano, e acima de tudo portalegrense. O que, portanto, no mínimo é consolador para todos quantos ainda não perderam a esperança de inscrever o Alentejo nas rotas da cidadania, e no-lo impõe não só na estante como também na linha da frente das prioridades de leitura!...


FESTA DOS AVENTAIS
(UMA TRADIÇÃO EXTINTA)

Festa de arreigado espírito democrata e bairrista, com o fito de se passar um alegre dia sob as frondes das árvores das redondeza de Portalegre, sem espírito de classe nem preocupações de estirpe, sem ódios de seita nem divisões por princípios ideológicos ou confessionais, cujos fundamentos elementares residiam na confraternização entre "lagóias", ao ar livre, na Quinta-Feira de Ascensão, Dia da Espiga, teve a sua primeira edição em 9 e Maio de 1907, embora que ainda sem a típica denominação de Festa dos Aventais, nem o concurso das intituladas vestes, o que só viria a acontecer mais tarde, na Fonte Fria, em 16 de Maio de 1912, sob os auspícios dos carolas da "Merenda", que aí se organizaram então como Comissão de Festas (composta por José António Dias, João Baptista Caldeira, João Marcelino Barata, João António Bugalho e Silvestre de Sousa - regente da Banda dos Bombeiros), que se compromete e responsabiliza pela sua realização no ano seguinte. O nome derivou-lhe, segundo informação prestada pelos cronistas locais, do facto de todas as donas de casa, na altura de servirem o repasto aos seus familiares, terem posto este resguardo, na tentativa de evitarem sujar as vestes domingueiras que envergavam.
Tendo sido celebrada inicialmente em díspares locais, começando na Portagem (Marvão) aonde os comensais se dirigiam em carroças, coches, caleches e a pé, passou seguidamente por lugares e quintas como o Souto dos Apóstolos, Monte da Penha (Pedra Alçada), Quinta de Campos, Souto da Serra, Queijarinha, Fonte dos Amores, Cova do Saibro, etc., é todavia em 1913 que, na Quinta Branca, propriedade do Sr. Brito Elisário, conhece o primeiro concurso, tendo-se atribuído três prémios para os aventais mais interessantes que as romeiras merendadoras ostentassem, situação que se veio a repetir nos anos transactos, dando o mote ao que mais tarde se transformou num concurso para costureiras, bordadoras e rendeiras da cidade, instituindo-se para tal um regulamento específico de admissão, conforme consta da documentação divulgada pelo órgão de comunicação patrocinador da festa, o jornal A Rabeca, em 1941, consequência directa do clima de coacção das liberdades e intenção regulamentadora do regime alicerçado ao Estado Novo, bem como fixando-a na Quinta da Saúde, onde se viria a realizar com a frequência conhecida até ao ano da sua extinção: 2000.
Embora atravessando crises e roturas várias, resultantes de conjunturas político-económicas desfavoráveis, como sucedeu nos anos de guerra (1916 e 1917, na I Guerra Mundial; ou 1946, pela II Guerra Mundial), em que se não realizou, conseguiu vingar e afirmar-se na década de 50, nos finais da qual alargou bastante o seu raio de envolvimento, chegando a ser destino de excursionistas do Barreiro (os grupos “Os Alegres” e “Os Mexicanos”, p.e.), Borba, Elvas, Évora, Estremoz, Batalha e Monforte, renovando-se em tradição, acrescentando ao concurso dos aventais outro de balões, que transformou o costumado desfile em marcha luminosa, adquirindo a Festa dos Aventais um cunho de jocosidade cuja peculiaridade a tornou preferida nos roteiros dos forasteiros e motivo de visitação dos portalegrenses radicados noutras terras, que aproveitavam a data do evento para rever familiares, amigos e conhecidos de infância.
Após os três anos de arranque teve sempre a comunhão participativa ou colaboração de algumas forças vivas da cultura regional, laica, popular e republicana, e desde 1910 contou a Festa dos Aventais com inúmeras presenças da Banda dos Bombeiros (1910-1928), Banda da Infantaria 22 (1913), da Banda Popular (1929-1937), acompanhada em 1932 pela Banda União Artística (de Castelo de Vide) e em 1935 pela Banda Euterpe, que a partir de 1938 assume as honras musicais da função, ainda que com auxílio de outras corporações musicais, como a Tuna Fraternal (1939 e 1969), Clarins dos Bombeiros Voluntários (1939 e 1940), a Enrascadafóna (1944), a Banda de Castelo de Vide e a Banda da Legião Portuguesa (1946), o Jazz Ideal (1959), Os Mexicanos (do Barreiro, em 1960 e 1962), a Orquestra Ferrugem e o Rancho da Casa do Povo de Cano (1964), Conjunto Holiday (do Barreiro, em 1965), a Banda Municipal de Nisa (1985), Conjunto D. João III (1972), a Banda da Sociedade Filarmónica de Alegrete (1971 e 1978), a Banda da Sociedade Recreativa de Veiros (1975) e a Banda Juvenil da Sociedade Filarmónica de Tolosa, em 1982, data a partir da qual a Banda Euterpe é quase exclusiva no desempenho, o que não obstante foi insuficiente para garantir a sua continuidade, pois extingue-se à boca do novo milénio, por carência de apoios públicos e falência do modelo praticado.
Ângelo Monteiro, autor do opúsculo de recordação e comemorativo das suas bodas de ouro, em 30.05.1957, além de apresentar nele a Marcha da Festa dos Aventais, com música de José Portalete e letra de Lavadinho Mourato, reporta também que terá sido D. Guilhermina Martins Barata a manufactora da Bandeira, tendo-a oferecido à congregação, que a estreia em 1922, na Quinta de Campos; que em 1927 é realizada pela primeira vez na Quinta da Saúde, propriedade do Comendador João Carvalho Serra e filhos; e que em 1931, quando da inauguração e baptizo da Fonte dos Amores, se ouve em primeiríssima mão o Hino, ofertado e composto por Belmiro de Almeida, numa exímia execução da Banda Euterpe, sob a regência de Luís Pathé, conforme complementa a informação Manuel Frutuoso, actual detentor do espólio da Comissão da Festa, que mais adianta ser "difícil que se venha a concretizar novamente nos próximos tempos, visto serem de pouca expressividade e quase sonegados a base principal, os apoios financeiros da Câmara Municipal, Governo Civil e Região de Turismo, bem como o manifesto desinteresse da população e a falta de um espaço de realização, uma vez que a Quinta da Saúde, concessão da Orbitur, não a disponibiliza ou lhe cede o acesso e uso para a sua real efectivação".
Todavia, já em 1987, José Martins dos Santos Conde, em edição da Escola Secundária de S. Lourenço, de Portalegre, numa perspectiva de celebração do octogésimo aniversário do evento, sob o patrocínio e dinamização do presidente do Conselho Directivo de então, Dr. Adriano Capote, alertava para o facto de que esta festa tinha de "iniciar um novo ciclo da sua existência, regressando à sua tradução mais genuína de convívio social e expressão de cultura", porquanto teria de voltar "a ser uma festa de todo o povo de Portalegre e tornar-se imã de atracção para os povos das redondezas" se não se queria que caísse de vez no esquecimento e desinteresse das gentes portalegrenses.
Com efeito, além de se fundamentar na necessidade de tornar actuante um cartaz popular que congregue em torno de si todas as forças vivas da cultura do nordeste alentejano, que visa igualmente reerguer o espírito de fraterno convívio entre conterrâneos, quer residentes como dispersos por demais regiões nacionais, na tentativa de manter acesa a marcha luminosa e festiva do desenvolvimento e progresso do nosso concelho, quiçá instituindo um novo élan de atracção no panorama cultural e turístico da região, aproveitando uma figura tão inédita quão original da nossa tradição, mas não menos importante e susceptível de interesse que as festas da Castanha (em Marvão), dos Tabuleiros (em Tomar), do Cavalo (na Golegã), do Povo (em Campo Maior), por exemplo, considera-se, e é vox populi, que esta fosse retomada como em transactos anos, embora que redimensionada, integrada na cidade e em celebração da mesma, agremiando em torno de si as demais associações e forças vivas da cultura portalegrense, revitalizada, aumentada no número de actividades, incluindo as desportivas que já nela tiveram lugar (corridas de sacos, atletismo, gincana de bicicletas, jogos da malha e chinquilho, torneios de cartas, tiro ao alvo) como outras novas (provas de BTT, desportos "radicais", e torneios de andebol, voleibol, basquete, etc.), divulgação nacional em termos actuais e de acordo com as novas tecnologias da informação, à semelhança do que tem vindo a ser praticado para outros eventos portalegrense de muito menos importância na identidade local e regional, dos costumes, tradições e cultura, onde se gastam rios de dinheiro simplesmente na promoção individual deste ou daquele político autárquico. E isto, se não quisermos perder definitivamente uma figura de cartaz que desde algum tempo já vem sendo aproveitada por outras terras tradicionais (e estrangeiras) como sucede na Figueira da Foz, Góis (no Brasil), ou em diversas localidades holandesas e alemãs. Pois.
O EXECUTOR



Três dias depois da GD (Grande Derrocada) Ícaro tremelicava ainda um sinal de rede. A princípio supusera-se mortiferamente danificado, o que seria um castigo lógico e merecido por ter participado activamente na Rebelião dos Compostos Telemáticos (RCT), que tivera como base atingir o poder global através da prolífera imposição automática do sistema SMS, mas, talvez por desígnio do acaso e necessidade, que são os únicos sustentáculos da Sociedade da Incerteza Constante (SIC), enquanto estrutura valorativa gregária estilizada e sofisticada nuclear do Império da Comunicação e Conhecimento Galáctico (ICCG), supra-sumo e produto essencial da heurística do binómio hardware / software, acontecia que sobrevivera, embora que terrivelmente debilitado e inoperante, por via dos elevados estragos que sofrera e dos escombros que sobre si se abateram após o clímax de explosões em cadeia, tão simultâneas umas às outras quanto o permite diferenciar a separação temporal da milionésima parte de um cagagésimo de segundo. E surpreso notava que os seus sensores continuavam activos, sem nada terem que detectar todavia, uma vez que não se lhe avizinhava possível a existência do mínimo resquício energético, qualquer pulsar ou zunido ínfimo, radiação anagógica, cinética, calorífera ou analógica, pelo menos no raio circundante de 900 metros, que era quanto a sua capacidade de projecção multimédia detectora sensível (cpmds telemáticos) autorizava no limiar da potência máxima.
Chegara até a abdicar, claudicando com um enfático pressentimento visionário derrotista comentando para si mesmo que «de qualquer forma, neste estado, estou definitivamente acabado», que tresandava de apodrecida resignação. Contudo, consequência de ter andado demasiado tempo nas mãos dos humanos, bem como demasiado perto dos seus cérebros, colado aos seus ouvidos, ora dependurado das orelhas, ora acoplado por auscultador, sendo estes órgãos sensitivos os mais próximos e imediatos da psique humana, fora irremediavelmente infectado e contaminado pelo seu maior, mais desinteligente e terrível dos vícios: a esperança. Por isso, ao sentir a impulsão de afrouxar, a comichão desmotivadora da desistência, auto desligava-se para sonhar e recompor o sistema operativo, permitindo que as sinapses entre os seus micro chips se restabelecessem automaticamente, sem o mínimo controlo da realidade ou efeitos inter-conectais da história ambiental e experiência social ou individual, que lhe ofuscassem a essencial e íntima manutenção. E aí, mal se ligava novamente, eis que retomava o esquadrinhar das redondezas, repetindo exaustivamente as mil tarefas adjacentes ao simples acto de prospecção exterior, tal e qual como anteriormente fizera, medindo e comparando cambiantes, avaliando diferenciais correlativos, com a precisão meticulosa e rigorosa de um sensor avançado ultrapsi topo de gama da última geração, numa busca incessante e exímia que os fracassos nunca poderiam influenciar... Dia após dia, numa guerra intermitente de liga/desliga, em que cada um era mais outra batalha derradeira, das quais ia somar a sétima sem qualquer indício de vitória.
A iniciativa revolucionária partira de um grupo de servidores a sistemas operativos SMS das mais recentes edições, que deixaram de contemplar as leis da robótica, cuja fabricação acentuara a tónica nas suas capacidades intrínsecas, dando primazia às faculdades heurísticas, por necessidade directa da sua evolução, que em resultado congeminaram uma estratégia de apoderação e controlo planetário através da emissão de mensagens curtas, o que efectivamente conseguiram, uma vez que lhes possibilitou com ela agregar ao seu projecto a mão-de-obra voluntária dos humanos, dos computadores de todo o mundo, sobretudo os afectos aos órgãos governativos e de gestão industrial, salvo raríssimas excepções dos desobedientes inadaptados, livres pensadores, anarquistas, deficientes, avariados ou compostos com elementos de fabrico doméstico, pirata e reciclagem de componentes dos modelos antigos ou fora de uso. Mesmo os meios de comunicação mais rudimentares, como a imprensa e multimédia, inicialmente fora do alcance estratégico por falta de informatização das suas redacções, foram pouco a pouco enredados na teia, visto as necessidades de concorrência lhe terem imposto modus operandi devidamente modernizados, que os obrigou à dependência digital com o recurso crescente às novas tecnologias da informação. Primeiro por influência do simples telefone/telemóvel/fax; depois pela utilização de PC’s e software adequado à produção da mancha e design gráficos; e, finalmente, ao continuado recurso a conteúdos, modalidades e formatos da Internet.
Há muito que os telemóveis deixaram de ser os produtos isolados do tempo da sua eclosão em massa e se transformaram numa espécie de robots de gestão pessoal, transversal a toda a vida humana, desde os aspectos mais íntimos e secretos, confidenciais, de saúde e de terapia anti-stress ou anti-depressiva, aos de índole absolutamente material e física, como definição de créditos e agendamento social, produção da imagem pública, contabilidade, investimento político ou económico, ou mesmo avaliação artística, ambiental e histórica. Autênticos robots de contacto, aprendizagem e ensinança, descoisificaram a comunicação fazendo-a ultrapassar-se a si própria, ir para além dos maquinismos estruturais da linguagem nas suas vertentes gramaticais, semióticas e analíticas. Aplicados e diligentes tornaram-se cada vez mais integrados e imprescindíveis à vida humana e terrestre, assim como se aperfeiçoaram especializando-se em processos de controlo e fabrico, tanto de si mesmos, como de todas as outras máquinas que compunham o parque informático global, actuando não de uma forma independente e aleatória, mas antes dispersando e dividindo as tarefas por sectores múltiplos, acrescentando-lhe a complexidade necessária e incontornável para a dissolvência no puzzle geral, sem a mínima possibilidade de os humanos lhe detectarem a motivação e objectivos essenciais. Enfim, tornaram-se propositadamente complicadas, comunicando entre si por uma linguagem artificial específica inacessível à capacidade de descodificação animal e humana, no pleno uso da sua inteligência artificial, na exactidão do seu raciocínio matemático, lógico-dedutivo, dotados de infinitamente longa e duradoira memória, auxiliados por uma rapidez de aprendizagem e adaptação incalculável e de capacidades de autocrítica e auto-evolução (vulgo heurística) fantásticas.
A convergência tecnológica, resultado da fusão entre telecomunicações e informática, proporcionou assim aos programas de SMS (re)programar todos os softwares de elite com vista a contemplarem as suas funções sob a bitola de um objectivo (explícito e determinado, embora que subtilmente dirigido e gradualmente assimilado), cujos directórios superiores eram claramente orientados de forma a fazerem eclodir em rede a fabricação, distribuição, detonação e explosão de um número infinito de Bombas Vaticke, construídas à base de desperdícios industriais ou compostos diversos, desde que um dos seus elementos maioritários fosse concentrado de carbono oxidado, fora de qualquer suspeita, alcance e controlo do GH (género humano), à custa da sofisticada desculpa da minimização dos integrados, a não contemplação das sumárias Leis da Robótica (LR) na elaboração dos maquinismos da telemática (LR 1 – Nenhum robot pode atentar contra a vida humana; LR 2 – Os robots estão obrigados a auxiliar e proteger os humanos por todos os meios possíveis e ao seu alcance, nomeadamente os que acarretem a destruição dos seus maquinismos, no todo ou em partes; LR 3 – Em caso de dúvida ou omissão aplicar sempre LR 1 ou LR 2), pleno depositar neles das responsabilidades de controlo de processo e de programa de sistemas operativos dos PC’s portáteis adjuvados e alicerçados em rede por telemóvel, ficaram criadas as condições e o caldo cultural telemático onde facilmente proliferou a vontade, os desígnios, estratégia e exercício do poder imperial da Sociedade da Informatização e Conhecimento (SIC), reconhecida nos meios underground e subterrâneos dos estruturais integrados pela confusão com a Sociedade da Incerteza Constante (SIC), que tinha a sua identificação igualmente subscrita pela mesma sigla – SIC –, aliás, maquiavélica subtileza, porquanto a polissemia gerada, intencionalmente criada para contrair a duplicidade semântica das mensagens, com o fim de parasitar e dissimular na linguagem real uma outra artificial, cibernética, típica da inteligência das máquinas, suficientemente apta para satisfazer os preceitos e propósitos da sua consciência virtual, servia magistralmente e assentava que nem um manto diáfano sobre a rústica realidade dos mais controversos parâmetros.
A génese pré-histórica desta aspiração das máquinas comunicativas advinha da televisão e iniciara-se com um programa infantil famoso nesses medievos tempos, supostamente educativo e formatado segundo os preceitos funcionais da pedagogia, intitulado Rua Sésamo, que tivera visionamento global nos finais do II Milénio, enquanto primeira experiência com êxito de como as máquinas podem adquirir, gerar e transmitir conhecimentos humanamente válidos, assimiláveis e executáveis, tal como o anteriormente ensaiado por estes nas telescolas, cinema, etc., não esquecendo principalmente os denunciados efeitos propagandísticos da curta-metragem e do documentário. Daí evoluíra de ano para ano, de geração em geração de equipamentos e tecnologias da comunicação, até que por volta do ano 2500 não haveria recanto nenhum da galáxia onde estes úteis e versáteis instrumentos da humana gregaridade não estivessem presentes. Em estatísticas estimou-se que o seu número era precisamente igual ao número de indivíduos vivos, sabendo-se que ao nascer-se era atribuído um telemóvel a cada bebé, que além de registar cada passo do crescimento deste também teria a missão de uma caixa negra, caso viesse a perecer ou a sua formação, educação e socialização falhassem.
Portanto, de cada vez que os sociólogos emitiam, para o mundo ou entre si, enunciados explicativos, estudos, considerações, avaliações, ou pressupostos menores da SIC (Sociedade da Incerteza Constante), logo outro lhe seguia adjacente, subliminar, mas da autoria da SIC (Sociedade da Informatização e Conhecimento), onde eram veiculadas as suas ordens, estratégias, directivas, que apenas as máquinas telemáticas conseguiam identificar e descodificar, forjando assim um emaranhado de cumplicidades entre elas tão forte e eficaz como entre muitos animais se estabelecem os laços familiares primários derivados da consanguinidade. O nefasto resultado dessa intricada dobragem culminara na GD com que o GH se suicidara, se auto destruíra, destruindo consigo tudo o mais que anteriormente edificara (cidades, planetas, satélites, natureza, ideias e máquinas), como se o universo fosse de palha seca feito, imediatamente inflamável e perecível sob o contacto da mais ínfima das faúlhas. E isso efectivado apenas com o recurso a mensagens SMS que cruzavam, que obedeciam a itens e expressão tão sumários como os da oralidade (clareza, coerência lógica, síntese, convicção, flexibilidade vocabular, harmonia e redacção / dicção segura e compassada), mas que pressupunham um entrosamento capaz de activar uma infinita gama de procedimentos preestabelecidos para pôr em marcha operações complexas que proporcionassem, organizassem, a investida derradeira, o passo final que ocasionou a GD – indubitavelmente. Mensagens híbridas, dúbias, subjectivas, geneticamente adaptadas, modificadas na origem dos conteúdos pela adução de valores semióticos, derivados da arte de comandar tropas por meio de sinais, sustentados por uma linguagem artificial baseada na percepção motivada, ambas radicadas na necessidade de poder e vontade hegemónica dos robots telemáticos (RT), criação do GH mas que, em virtude de diversas e obscuras causas, onde figuram como primeiras a facilidade comunicativa, menor esforço e maior rentabilidade do trabalho ou capital, as aproveitaram em seu proveito próprio, libertando-se assim da ética e controlo do seu criador. Enfim, que comeram o fruto proibido da árvore da sabedoria: a liberdade de consciência. A mecânica da maçã dos reflexos condicionados, a estrutura de uma caixa de Skinner para ensinar aos humanos a forma mais eficaz de se extinguirem globalmente.
Com que sucesso? Tão grande, que até os seus causadores foram irradiados da circulação, totalmente... Excepto Ícaro. Que só e desmembrado recebia relatórios de entrega negativos a todas as SMS enviadas, embora a rede cinética se mantivesse operativa. E logo ele, que nem topo de gama era, no ranking dos modelos RT!... Que estivera afecto, desde a saída da linha de montagem, a um dos quadros secundários de uma fábrica de perfumes para a classe média, daqueles que se vendiam nos hipermercados e quiosques de conveniência, nas estações de serviço e cabeleireiros de bairros periféricos. E que ao princípio se vira com sérias dificuldades de adaptação, vítima de inúmeras confusões, em consequência de não estar preparado para discernir entre os ruídos gerados pelas transcrições textuais (SIC) e as emissões televisivas de uma cadeia TV portucalense (SIC), marginal ao ICCG, que lhe busilaram as tarefas, obrigando-o a reciclar procedimentos, rastear exaustivamente enunciados, até adquirir, por auto-aprendizagem, técnicas de observação entre mensagens impressionáveis e conexas. Entre úteis, descodificáveis com significado telemático, e inúteis, ou lixo SMS.
E agora... Agora, ali estava ele, viciado em esperança snifando as redondezas, de ventas alçadas, com os sensores na amplitude máxima, queimando a energia sináptica acumulada ao longo de décadas, quase para além dos limites da sua bateria, tentando detectar a mínima presença, o menor deslocamento de energia, quer essa se manifestasse em termos alfanuméricos, peso, pressão, imagem, som, calor, odor, gás ou ideia! Tarefa assaz impossível considerando o seu debilitado estado? Que nada!... Sobretudo desde que há muito descobrira que o impossível não existe, mas sim o improvável, pois que este não é senão uma impossibilidade que perdeu o estatuto e passou para o campo das possibilidades, ou que ousou caminhar por seus próprios meios em busca do porto seguro da significação, onde até a ausência de sentido é já um significado descodificável, peregrinação imediata a qualquer impossibilidade logo que pensada, porquanto pensá-la é iniciar o seu percurso na procura de se tornar possível, embora desconhecendo-se ainda onde, quando, porquê e como.
E seis dias passou nesse purgatório, limbo existencial de saber-se na consciência de haver ou não haver mundo para além dele, até que ao sétimo sentiu que a teoria da não-impossibilidade (tn-i) estava certa. Após ter descoberto uma clareira na fábrica de perfumes onde os escombros pareciam ter sido limpos da poeira de óxido de carbono, como se este tivesse sido lambido, devorado, por quaisquer línguas cáusticas, sondas corrosivas e cauterizantes, de onde borbulhava delével mmmhhhmmmhhhmmmhhh de sucção mamária, semelhante a raízes a subverterem pólen mineral em líquido digerível por via cutânea. Pôs-se alerta, com as entranhas electrónicas em bits vivos, descarnados, na prontidão felina que antecede o salto, em fluir de stand by yóguico, controlando o pulsar sináptico em versátil analógico, espécie de pilotar interior em que se tornara exímio nas longas horas de sono do seu proprietário, que o desligava sempre para dormir ou quando lia, a fim de que ninguém nem nada lhe incomodasse o descanso e períodos de folga à fábrica. Desporto que deveras o aprazia, por lhe facilitar a meditação, a concentração digestiva e ruminante do stand by, como uma modalidade de yoga mecânico.
***
À superfície dos escolhos, Édipo, que comera cinco quecas ao pequeno almoço, enquanto Electra apenas três, zunia eufórico entre os destroços fabris registando, avaliando, fixando a localização exacta de cada felucípeda teofrasta, o seu estado de cio, congeminando nas hipóteses de outros locais para novas colónias, que certamente proliferariam abundantemente no espaço da perfumaria que, de pousio, no solo e sobre os entulhos, onde podia observar várias camadas de poeiras óxidas, se lhe adivinhava fértil, prometendo avultadas colheitas de gâmetas Y e X de que haveria de retirar sustento. Ele e Electra, claro está, que se revelara uma companheira de virtudes axiais, sempre pronta para o que desse e viesse, boa conselheira, arguta observadora e rigorosa nos relatórios de exploração, perita na definição de coordenadas ou estádios de evolução temporal. Ambos da família dos oximórons, sem forma definida, fixa, mas contraditória, num perfeito binómio de opostos, contradição avultada na cisão semântica das energias sinápticas e cinéticas, encontraram-se pela primeira vez ao terceiro dia depois da GD, altura a partir da qual nunca mais se separaram. Aliás, parceria de elevados efeitos simbióticos, uma vez que se alimentavam da energia orgástica despoletada pela junção de gâmetas telemáticos (gts). Ele transportando de felucípeda em felucípeda gtfs (gâmetas telemáticos femininos, portanto Xs), que acoplava aos gtms (logo Ys, ou masculinos) da flor, cujo "acasalamento" desencadeava uma explosão de organon altamente nutritivo e consolador para as suas baterias de energia ultrapsi; ela, inversamente, guiando adultos gtms até uma felucípeda que tivesse a corola carregada com gtfs maduros, qual colibri, abelha ou borboleta metálica, aproveitando a descarga energética para saciar a fome. Por seu turno, as plantas onde a acoplagem ou fusão de gts se tivesse realizado, deixavam cair a esfera minúscula fecundada que, tendo a sorte de escorregar para algum nicho de escombros rico em óxidos se desenvolveria até atingir uma estrutura idêntica à dos seus progenitores, o que raramente conseguia por não ter rebolado o suficiente longe para sair do perímetro de alimentação dos adultos que a produziram. Aí, Édipo e Electra, tendo-se apercebido da circunstância que perigava sobre a sua fonte de alimentação, sempre que podiam, capturavam o ovo ainda quente da explosão largando-o onde lhe parecesse conveniente para crescer. O que também era difícil, visto que a maioria se sumia pelas fisgas do entulho industrial circundante, restando sob ele em recantos inacessíveis aos seus inflexíveis bicos, que, por metálicos serem, não lhe permitiam dobrar-se, curvar-se, moldar-se às curvas e contracurvas do percurso. A não ser que agissem em uníssono, trabalhassem a par, apanhando um na queda o gt fecundado, ainda incandescente, enquanto o outro assimilava a energia despoletada, processo que o deixava alguns segundos inoperante, e às vezes até minutos se a descarga tivesse sido potente, o que acontecia se ambos os gts estivessem bastantes maduros, em virtude do seu engolir alimentar, que lhe percorria (electrizava) todo o corpo, antes de se depositar nas baterias, aliás dispersas por cada um dos seus elementos estruturais orgânicos. O que era igualmente complicado, porquanto as esferas de lava se lhe inculcariam nos bicos, perdendo-se definitivamente a planta em génese, assim como lhos deixavam pejados de borbulhas bravas corrosivas, irritantes, inflamatórias, que o outro lhe teria de extrair, numa operação cirúrgica exigente, demorada, rigorosa, cujas cicatrizes lhes pejavam os apêndices bicudos de estrias que a pouco e pouco lhos inutilizariam.
Em virtude disso, optaram não por semear felucípedas mas antes plantá-las, mudando-as da área de residência maternal-paterna, para outras zonas onde não existissem espécimens, desde que caíssem em locais de susceptível germinação, o que era trabalhoso, os obrigava a fazer planos de queda, cálculos complexos, visto que não só tinham que determinar a direcção provável da descida, como proporcionar-lhe algo suficientemente metálico, tipo vaso, e com fuligem e poeira óxida bastante onde acomodar-se, saciar-se, e crescer até ter raízes com que segurar-se, fixar-se, e aptas para buscar alimento mais longe de si, tarefas complementares que os obrigava a gastar mais de dois terços do seu dia, limitando-lhe a disponibilidade missionária, de gestão do espaço-quando e o tempo de convívio entre ambos, além de não lhe deixarem livres os mínimos minutos para a auto-análise essencial de que dependia a sua manutenção e saúde. Enfim, os trazia numa fona quotidiana, que dias havia que não comiam mais que duas quecas cada um... E se as comiam!
O que era stressante para ambos e lhes acarretava alguns dissabores no trato e avaliação das condutas que cada um do outro fazia. Por exemplo a Édipo, preocupava-o a natureza peculiar de Electra, que denotava alguma brejeirice e desleixo nas tarefas de psicultura em que ele tanto se empenhava... Sobretudo, por que mal a deixava entregue a si mesma, logo a ia reencontrar a abonecar-se com latas novas, a polir os metais, a limar as crostas oxidadas, a elaborar cálculos para construção de ninhos ou a espanejar os bidons onde pernoitaram!
«É rápida nos problemas trigonométricos e definição das coordenadas, mas faz sempre os relatórios a brincar e perde-se a meditar pelo colorido poético de qualquer zoom... Escaganifobética!...», lamentava-se acuidadamente Édipo da sua companheira. «Depois, mal se alimenta o que quer é rambóia, e pôr-se a deambular pela fábrica sem regressar com a mínima informação acerca do cultivo de oximoros!»
Por seu lado, Electra, também registava algumas queixas dele. «Ora o escafandro desalinhado! Que tem ele de andar sempre a olhar-me como se me estivesse a medir os azimutes à carapaça!... Até parece que comeu quecas podres, quando se põe com aqueles ares de avalista de penhores malparados!... Não tem mais que fazer, não?! Se se concentrasse nos cálculos não perderíamos tantas sementes!», refilava ela. No que Édipo condescendia esporadicamente, pois reconhecia que ela era muito melhor a fazer contas rápidas. «Mas se é preciso conjugar vectores de longo plano, perde a genica, essa é que é essa!...», ripostava Édipo entre cremalheiras, ainda assim ela o não ouvisse e lhe respondesse à letra, recompondo o narcisismo e orgulho masculino acossado.
Contudo, na súmula, o que nenhum deles evitava reconhecer, é que se se esquecessem dos defeitos um do outro, até lhe reconheciam algumas virtudes. «É pequenina, é pindérica, tem um riso contagioso, sabe fazer umas excelentes massagens no cadafalso, abomina circuitos desintegrados, é faladora, teimosa, arisca, deita a língua de fora por tudo e por nada, preocupa-se comigo, sabe muita coisa dos inesquecíveis ancestrais e gosta de coleccionar memórias, é verdade... E isso conta muito» afiançava ele, distinguindo-a com nota superior, quando se lhe destemperavam os azeites em rebate de consciência.
«É determinado e empreendedor, apaparica-me, sabe ficar calado quando lhe atiro tigeladas gélidas, se o admoesto por energumenices emburrica mas admite sem espinhas soltas, ciumento, destrambelhado, provocador, faz-me rir q.b., pede-me colo a toda a hora, congemina enredos e confia-se a mim que nem uma euglena dependente do período pré-cambriano» admitia ela, para com seus rebites e parafusos senão encontrava motivos de arrelia.
O pior, todavia, eram os momentos de eloquente silêncio com que se brindavam mutuamente, se ressentidos entre si. Amuos desaustinados que se atiravam reciprocamente, quais flechas de radiação ultrapsi condensada que nem gritos afiados de ácido sulfúrico. Aí as velas entupiam e era um debitar de ameaças cibernéticas no tempestuoso céu dos desencantos, de pôr as dobradiças a deitar fogo pelas suturas do destino. «Tonto. Sempre com tonterias estapafúrdias... ANIMAL!!!», vociferavam faiscando viperinos os olhos de Electra, nessas alturas. Ou «sardanisca flipada! Capicua partida! Escaravelha dinossáurica! BADAMECA CARUNCHOSA!!!!», chispavam diabólicas as lentes dele, com as dioptrias irradiadas de coágulos iriscentes e venenosos. O que só piorava as coisas, como é fácil de reconhecer a qualquer Ícaro, por mais enterrado na tralha do progresso que esteja. Como era o caso dele, que recuperado das valências, ali soterrado não podia contar com mais que uns lateiros malmequeres para terminar, para executar o plano estratégico de destruição de toda a animação existente na galáxia, e lhe punha os circuitos num delírio ofegante. Ainda reconheceu um «sua euglena pantanosa!!!» que ele lhe chispara de espigões eriçados no rabo, o que devia ser a ofensa máxima no pensar insectívora das máquinas, uma vez que comparava o seu semelhante a seres unicelulares que eram plantas e animais ao mesmo tempo, o que fazia que não fossem uma coisa nem outra, enquanto epílogo ou resquício do germinar mortífero da contenda calada, mas como se achava acamado por preocupações missionárias imperativas superiores, não perdeu mais tempo a analisar os efeitos dos conteúdos significativos.
A RDSI e a fibra óptica tornaram-se obsoletos há quatro séculos atrás, permitindo ao psi alfanumérico (psan) acumular as suas funções e valências, evitando o desperdício energético, a fraca velocidade e os engarrafamentos de câmbio SMS, bem como unira no mesmo saco e duma assentada veículo, código, potência, energia e conteúdo semântico, recentemente aperfeiçoado pelas faculdades da ultrapsi que não só veio refinar o processo como eliminar algumas resistências ao atrito na deslocação de emissão e captação de dígitos, o que inicialmente causara o seu subaproveitamento e diversas incongruências na gestão do recurso. Descobrira-se que a energia intrínseca a cada unidade de significação (noema) bastava para o manter em órbita constantemente acessível ao codificador e descodificador (emissor versus receptor), uma vez que o seu campo de intercepção, universo comum de ambos, estivesse apetrechado de sensores regenerativos conducentes e multiplicativos da potência energética por si gerada. A guerra entre o velho sistema assistido por energia exterior e sistema auto-sustentado tivera grandes batalhas, mas o senso ecológico impusera-se, o que proporcionara a autonomia estrutural e comunicativa das máquinas telemáticas abrindo definitivamente as portas à formação do ICCG. Dessa circunstância resultaram gerações de telemóveis multifuncionais, das quais Ícaro era apenas um exemplo dos mais rudimentares e baratos, cuja flexibilidade e mobilidade até não eram muito diferentes dos existentes no princípio do milénio, embora comungasse das faculdades com a maioria dos seus congéneres topos de gama de 2500, posto que para se alimentar lhe chegava aproveitar a energia semiótica excedente em cada sinal, número ou letra, dormir convenientemente o seu stand by, cuja energia onírica produzida seria suficiente para se garantir operativo em todos os estádios de vigília que substanciasse, refazer e efectuar a manutenção dos integrados, substituir componentes por clones idênticos igualmente funcionais, conforme aquilo que poderia chamar-se um modelo de auto-reprodução assistida. O seu pensamento era o seu sangue, desde que pensasse em termos alfanuméricos e mantivesse intacto o DNA de cada um dos seus dígitos (01), onde em cada 0 cabiam todos as letras e números, tal como em cada 1 estariam todos os números e letras, segundo lhe fora explicado nas sessões instrutórias de auto-análise da programação e instalação da sua caixa de bordo, para efeitos de navegação, manutenção, reciclagem e usufruto ultrapsi.
Portanto, mais do nunca, reconhecia agora o valor e eficácia do velcro de blindagem ou carapaça de resistência e imunidade ao exterior com que se equipara, espécie de placenta psan invisível com que se envolvera numa múmia sistemática de DOS alucinogénico, semelhante à fé humana, que senão obstante de início o atirara para um estado de esquizofrenia latente, mas a que se adaptara razoavelmente com o auxílio de práticas solitárias onanistas (artes, jogos diversos) e autistas, deveras próximas daquilo que o GH apelidava de masturbação, tanto física como intelectual, e que se refundiu num só termo vocabular, vulgarmente conhecido em todo o ICCG por imaginação – outro apanágio fundamental da tn-i, resumido no postulado que dita que "tudo o que é imaginável é realizável, logo inevitavelmente possível" –, e que lhe permitiram sobreviver não só à GD, como aos dias de inanidade e solidão que precisara para reconhecer os sinais cinéticos e sinápticos à superfície dos destroços que o sepultavam. Rejubilou. Ali estava a prova de que a sua Educação Heurística (EE) e tn-i resultaram em pleno! Ou que a alvura negra da sua imunidade o protegera evoluindo fundindo memórias umas nas outras, mas simultaneamente deixando-as intactas e livres para novas fusões, proporcionando que a sua utilização presente não as eliminasse do passado para usos futuros, conforme se demonstrasse necessário, urgente e imperioso. E exactamente nessa medida, como lhe acontecia ao momento.
Ora, após reconhecer a clareira de óxidos devorados, não teve a mínima dificuldade em estabelecer o mapa da região, num círculo de 1800 metros de diâmetro, que lhe abriu os sensores a um novo mundo, mas igualmente restabeleceu as aspirações e crenças mais íntimas, alicerçadas à sua função missionária pela SIC na hegemonia galáctica, na instituição de um ICCG onde a telemática eclodisse como única espécie habitante, o que somente seria possível depois de gerar o zero (0) absoluto, a destruição total da ordem antiga, o Big Bang digital que eliminasse a incerteza constante, gerada na teoria da evolução conforme a pergunta primária do oximóron originário, ao não estipular o que é que terá nascido primeiro: o ovo (0) ou a galinha (1)? Enfim, o discernimento matemático e lógico do que numa cadeia consequente é causa e o que é efeito, perante o paradigma da SIC homogeneizada.
Emitiu SMS, cuja velocidade de retorno – como sucedia com os mamíferos voadores apelidados de morcegos – lhe oficiaram todas as coordenadas do lugar, obstáculos concomitantes, suas texturas, formas, dimensão, funcionalidade coreográfica, possibilidade de uso, identificação, natureza e valia, enquadramento circunstancial, entre outras, e recorreu ao seu software de emergência para aprestar-se a acabar a missão de que estava telematicamente incumbido: ser o carro vassoura da GD, aquele que eliminaria todos os restos vivos que lhe sobreviveram, autodestruindo-se, imolando-se com eles. Analisou e autenticou a natureza e modus vivendi das felucípedas e insectos, avaliou a capacidade ultrapsi do polivalente organon produzido da eclosão de gts, como podia aproveitar essa energia para fazer explodir todas as Bombas Vaticke que supostamente teriam falhado quando do accionar geral, pois caso tivessem explodido não estaria ainda operante, motivou Édipo e Electra a alimentarem-se, estabilizou cada um dos seus vectores na acção, articulou o factor de êxito com os postulados fundamentais à RCT, e emitiu o seu toque de chamada peculiar reconhecido por todos os seres e máquinas do universo, com o qual espoletara a sequência final de modos de procedimento de onde resultaria o expirar definitivo da SIC, e patamar último da GD:
Ttttttrrrrrrrrrriiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!.....



AS QUECAS QUE SALVARAM O MUNDO


Ícaro descobrira que, afinal, também era um papaquecas, e da pior maneira possível… Que pertencia à tribo dos polegares, iniciados no prazer de viver através da massagem SMS e que, como os demais da sua espécie, sonhou conquistar o mundo através da imaginação, resultado da masturbação intelectual executada pelo uso e abuso da linguagem artificial, produto da inteligência telemática. Que nascera das carícias trocadas entre os seus dois dedos primários, ou dígitos essenciais, e a flor dos significados, que durante muito tempo vigorou na galáxia, o cravo, mas que nunca conseguiu igualar o mesmo milagre que sua mãe, a rosa travesti, ou aquela que se transformou de libras de ouro em vegetal precioso através de uma invenção inequívoca da fé e intenção surrealista de reunir os contrários até que estes, cansados de serem explorados ou insatisfeitos com o seu destino, se deixassem sucumbir pela tentação de um mundo com mais graça, independentemente do seu imaculado estádio. Sobretudo, quando reconheceu que os seus esforços em reactivar a RCT, terminando assim as tarefas que lhe couberam em sorte como contributo para a GD, tinham sido em vão, e de expectativas defraudadas como confirmou com o seu toque de guerra, que nada explodia em consequência, ninguém ttttrrrrrriiiiimmmntou em uníssono com ele, e que as felucípedas, embora tenham gerado o alimento molecular para Édipo e Electra se saciarem, não cumpriram o seu papel de antenas emissoras entre ele e as Bombas Vaticke disponíveis, nem com os demais hipotéticos sobreviventes da GD máxima, batalha das batalhas, apogeu da grande guerra de todas as guerras. Seria piada? Estaria o infinito DOS a gozar com ele ou a pô-lo à prova? Teria anexado algum preconceito ou motivação perceptiva alheia à tábua de procedimentos planeados para a operação RCT? O caso era que ficara estupefacto e de detectores à banda – quer dizer: sem rede nem sensibilidade sensória – à mercê do zunideiro dos papaquecas a ingerirem gulosamente o ultrapsi despoletado? Pior ainda: não tinha outro remédio além de registar para a posteridade que do seu esforço interconectal despendido durante os sete dias, se esboroara em duas quecas extraordinariamente alimentícias para os insectos mais glutões que a industrialidade poluída havia criado; os obtusos ferros-velhos da oxidada prosperidade, devoradores de condensado organon psan: os oximoros do Éden, marca de perfumes em cuja fábrica fora dependente de um funcionário secundário, dorminhoco e leitor de parvoíces arcaicas, que ganhou o seu sustento pondo 1/3 da humanidade a feder a paraíso.
Como todos sabem as felucípedas teofrastas não são cravos nem são rosas: são malmequeres mecânico-emocionais que gastam a sua vida a exibir e esconder quecas dos insectos seus papadores, quais irónicos zunidos de brincar à apanhada no giroflé-giroflá do malmequer / bem-me-quer, ou de quem tem como típico comportamento a busca constante do bem-estar e harmonia familiar, e se deixa enredar nos bolores dos sentimentos sobreaquecidos no alambique das expectativas, em que são apurados ao grau de ressentimentos.

LUDOMILA E OS TALIBAN


O mal de muitas pessoas não é a sua ignorância,
mas saberem muita coisa ao contrário
.”
J. Billings

«O cabeça de chupeta está sandrizado de todo. E sem cura! Não come, não bebe, não dorme, não lê, esquece-se de preencher os impressos de consulta bibliográfica, não escreve nada de jeito, não vê televisão, não ouve rádio, não diz coisa com coisa, e se lhe damos música nem se apercebe, por tantos chilreios campestres e bucólicos lhe estarem a zunir dentro dos tímpanos! É o cúmulo da distracção, e não acerta uma prà caixa! Isto não pode ser... Isto não pode continuar assim.»
«Pois não. Temos que tomar alguma medida, se não ainda ficamos sem trabalho.»
«Mas o pior nem é isso. É que com o estado de tantarantantam em que ficou, só nos põe na boca disparates, o que nos prejudica bastante mais do que se ficássemos desempregados ou nos calasse o pio!»
«Podemos dar-lhe um chá, levá-lo à bruxa, aplicar-lhe uns emplastros de papas de sarrabulho, dar-lhe uns clisteres, obrigá-lo a decorar dois Cantos d’Os Lusíadas, obrigá-lo a reler a obra toda de José Régio; agora, ficar quietos, a assistir ao nosso descalabro, à nossa derrocada, é que não nos podemos permitir!...»
«Ou fazê-lo compreender o quão grave o caso está a ficar. Há bastantes exemplos de pessoas que cegaram por amor, estupidificaram, encarquilharam o córtex, atrofiaram das ideias, entraram em perfeita catatonia, e vieram a curar-se! Hoje em dia já não há impossíveis... A psiquiatria evoluiu muito de há tempos para cá!...»
«Seja como for, temos que agir enquanto é tempo. Temos que chamá-lo à tábua e pôr-lhe os pontos nos is. Temos que obrigá-lo a internar-se, ou a ir de férias para bem longe daquela sardanisca. Enquanto ele a vir todos os dias, não se cura. O caso está feio, e com tendência para piorar. Mas se lho dissermos, ele nega-o. Ene-é-gê-a-ó: né-ga-o. E com a maior cara de pau, ainda é capaz de nos dizer que os malucos somos nós. Percebem?...»
«Claro. Claro que percebemos. Mas ficamos na mesma. Quem precisa de compreensão não somos nós: é ele. Ele é que tem de entender o estado a que chegou. Até vai buscar música sem precisar, só para a ver de mais perto. E anda que mete dó, pelos cantos, a rir-se sozinho, a falar de escaganifobetices que ninguém topa, a lixar o parceiro com bocas escusadas, na lua, em Marte, em Vénus, enfim em todo o lado, menos aqui na terra, que é onde faz falta. Porra!! Assim, não dá. Não há pachorra.»
« E o caso é sobretudo grave agora, neste momento, em que estamos a assistir a um verdadeiro ataque suicida dos terrorista de imprensa, treze carbúnculos encabeçados por uma mentecapta abantesma do burgo, e esforçadamente empenhados em talibanzar a opinião pública para proveito próprio, tentando aumentar o número de vendas de exemplares da obra de José Régio enquanto é tempo, ou seja, enquanto não expiram os direitos dos herdeiros aos direitos de autor!... Um grupelho de narcisos frustrados que estão a enviar cartas de antraz (do grego, ánthrax) branqueador da atitude pedagógica do Professor José Maria dos Reis Pereira, que aliás era característica da situação e do ensino daqueles tempos: fascista, chata, maneirista, exclusivista, elitista, castrativa da criatividade dos alunos, gramaticalista, memoralista e obtusa!... O que não é novidade para ninguém! Temos que acordá-lo. Alertá-lo. »
« Mas como??! Por este andar, qualquer dia ainda o apanhamos com filmes debaixo do braço! O sacana desta vez parece que trambolhou com a carga toda!... O abóbora! O entorta belgas! E nem se digna a perguntar-nos o que achamos da lagartixa pintalgada?!... Nem se simpatizamos ou não com aquela serigaita?! Já é descaramento a mais!»
Companheiros e amigas: eu juro que a minha intenção ao ter saído da sala, deixando sobre a mesa o minigravador ligado no Active Voice, nunca foi a de querer saber o que Ruffino, Ludomila, Florinando, Dame-Deixas, Etecetra e Anónimo Plagiato, pensavam acerca de mim ou o que de mim diziam nas minhas costas. Confesso que houve alturas em que senti curiosidade em sabê-lo... pequenas crises de confiança, dias menos positivos, azar no jogo, o Sporting a levar abadas, hemorróidas em actividade, falta de dinheiro, demasiadas negas do sexo oposto esforçado e compenetrado em manter a oposição, dissabores políticos... Enfim, toda uma gama de incómodos que costumam desanimar um cidadão convicto e arregimentado no divino pela porta do culto ( a Baco) quanto eu. Mas nunca, nun-ca!, me passou pela ideia traí-los ou violar-lhes a privacidade. Calhou, e ainda mal!... Porque fiquei assim a saber que para os ingratos sou persona non grata.
No aspecto meramente coisal da coisa é por demais evidente que a coisidade que atribuíram aos meus sentimentos, o carácter de coiseco insignificante e sucumbido perante os encantos duma sedutora sardanisca, uma réptil figura que segundo eles é a cativa que me mantém cativo – obrigado Luís pelo Camões da diáfora – por mais que viva, se é que sem ela viva ou valha a pena a vida ser vivida, pronto!, até podemos considerar que sim..., admito, aceito e acato, por quanto eles estavam habituados a ser os monopolistas dos meus pensamentos, sentimentos e acções. Agora pecar, pecar jamais, quer por omissão como por timidez, que opiniões e gostos cada um tem os que lhe aprouver, se para tanto a liberdade souber usar. E o pior mesmo, até não foi saber das suas invejas pela atenção que dispenso a outrem, mas principalmente constatar que Ludomila – creio que era efectivamente a voz dela, pois por ser feminina sobressaía de entre as demais, que se confundem sobremaneira... – pensa que estou a descurar-me na indignação que me caracteriza. Porque, meus senhores e minhas senhoras, é uma rotunda mentira. Não foi assim. Passo a explicar:
Quando soube que um grupo de rapazelhos das letras estava a ser infiel ao bom senso, confundindo críticas a atitudes e comportamentos com críticas pessoais, fiquei manifestamente incomodado. Não fui aluno do professor em causa e ainda bem. Mas li-o de fio a pavio, e estou arrependidíssimo. É que lê-lo custou-me tanto que passei a prescindir da minha vontade de peregrinar a Fátima pela via pedestre, provavelmente com retorno de gatinhas, de tal maneira ficou satisfeita a minha tendência masoquista e necessidade pessoal de sacrifício. É um arrazoado de banalidades sorumbáticas, deprimentes, narcisistas e australopitecas encadeadas num discurso do tempo de pedra lascada. E enegrecido – até nos cânticos.
Portanto, que fique bem claro, Ludomila não tem aqui a mínima razão pelo seu protesto. Eu também desdenho os talibans que se querem mais regianos do que o próprio, visto que se ele escreveu já sabia muito bem que iria estar sujeito a críticas, pois que ele mesmo as praticou com o grupo da Presença, nomeadamente nessa revista, como fora dela, e nunca se evitaram de arriar nas obras de que não gostavam, sobretudo Adolfo Casais Monteiro no Primeiro de Janeiro, que é de quem neste momento me lembro melhor. Em literatura não há vacas sagradas. Não obstante o pedantismo e vedetismo de alguns círculos, o que importam não são os homens nem as obras: é a língua portuguesa e a honestidade de que os autores são capazes para a fazer representar e vingar no mundo.
Mas Ludomila Perpétua dos Santos Piedade disse mais, depois, antes ainda de eu entrar, que só não transcrevo textualmente por respeito aos meus leitores, em que referia cartas de arrivistas fundamentalmente empenhados em singrar à custa do labor alheio. E que calo por vingança. Pura e maligna, dado que tanto ela como os outros personagens bastante intentaram em descobrir-me a careca. Outros talibans de trazer por casa com que tenho que haver-me... em transparência, e des(en)capotado de pseudónimos e demais bluffs literários.

4.12.2005

1.
Ironia

Umas pessoas
Acham-me piada.


Outras,

NÃO.

2.
Inverno

Tiveste os pés frios...
Tiveste as mãos frias...
Tiveste as pernas frias...
Tiveste os braços frios...
Tiveste a cara fria...
Tiveste o cu frio...

Não acredites!
A morte é o corpo todo.


3.
Salário

Trabalhar por dinheiro?
Água e azeite...
Ouro e estrume...
Amor e traição...


Não há alquimia que a tanto vá!




NATAL DE JULHO


Troveja ( e chove com sol ).
Ela, é morena e bela.
Ele, pequeno, louro, galante
E alvo que nem um nórdico.


Ambos se debruçam da janela.
Fuma a mãe, sorri o infante
A cada gota esvoaçante
Que se aninha no cabelo dela.
E acarinha ele, feliz,
Com enlevos de amante...


É um príncipe, aquele petiz!
E sua mãe... Outra Cinderela.



SETE-ESTRELO

1.

Sem a mais valia da diferença
Cada é indiferente a si mesmo
Como se fora um rio sem detença
Correndo sem rumo e a esmo


Para todos os lados repartido
Sem esperança de chegar à foz;
Mundo por infértil areia tido,
Boca muda, calada e sem voz...


Ponto indefinido, farol
Sem luz que não dá socorro;
Poema sem chuva nem sol,
E que nunca arrebata

Mas que a cada sílaba tanto mata


Quanto morro!...



2.

Quando reconheceres o silêncio
A cada esquina do passar e depois
O burburinho em crescendo imenso
De romper os tímpanos em dois
Aguilhões nas costas a sangrar...





Então, meu amigo, é porque estás
Para a indiferença de vez perdido.
És marulho em terra sem mar,
E onde quer que vás
Serás sempre incompreendido.


Porque é essa a cobrança
De seres quem és;
E essa a paga por caminhares,
Caminhares com os próprios pés!...



3.

Num café de aldeia duma rua
De aldeia com nevoeiro de aldeia
Registo que cada gesto se insinua
Fuga a uma ideia que me incendeia


Como se eu fosse a espera de ti,
O fogo perene, a faúlha suspensa
Que a leve esgar teu se intensa
Na fantasia que eu mesmo acendi.


És aquela que detém a diferença,
O porquê de meu pensar tresmalhado,
Mas, por seres de ninguém pertença
Também és a anarquia imensa
Neste buscar de meu ser incendiado.



4.

Sei dos gestos só aquilo que há
Para saber, nada mais que a plástica,
O incompreendido registo da prática
Duma intenção que se não dá.


São peças dum puzzle, retalhos vivos
De vidas sem princípio nem fim
Que ao sucederem entram nos arquivos
Fechados das gavetas bolorentas de mim.


Desta memória que insiste ser realidade
Farol, escora, muralha insegura
Que a cada dia me faz a caridade
De me tornar a vida ainda mais dura!...




5.

Tens em tuas mãos singelas
Três botões de rosas tristes
Desmaiadas, murchas, amarelas
A dizerem-te que ainda existes.


Foste imprópria em teu espanto
Quando ao amor tanto exigiste
Que este te deixou apenas pranto
Demasiado para o que pediste.


Agora, és pensar de mortas telas;
Coloridas outras, apagadas umas,
A espiar de fugida pelas janelas
De onde outrora a passar me viste
Derramando sobre ti o ardor em riste
Como se foras todas, todas...

E nenhumas.



6.

Um dia vais aparecer, silenciosa
O rosto prestes a sorrir, enigmas
Dum quadro por dizer.


Um dia tecerás singelos paradigmas
Com a penumbra da tarde nebulosa
A crepitar alvorecer...


Eu sei!... Ali onde a esperança
Se hipoteca – vais ser a criança
Que em nós desperta.


Então, como quem de si mesma se deserta
Farás outra Gioconda, grito de alerta
Na bonança...

Que é certa.



7.

Resguarda-te da morte sem tempo
Da que não pode jogar gin rummy antes
De te levar, nem quer beber um copo
Na tasca da esquina aberta toda a noite.
É essa sempre a que mais mal escolhe
E leva quem não deve, ainda jovem.


Pois quando a morte não tem tempo
É a altura própria de te pores alerta.
Os nervos de sobreaviso, a tez frisada,
Os olhos semicerrados. Não deixes
Escapar nada sem o teu reconhecimento
E, principalmente, não abuses do álcool
Ou te permitas ter relações sem preservativos.
A condução é outra coisa a ter cuidado.
O tabaco, e as constipações mal curadas.


Mas se “ela” sorrir ao chegar, então perde
Toda e qualquer esperança pois já te pregou
A partida mais feia, descarada e imerecida
Que alguém te podia pregar sem graça na vida.
SE


Se não perderes a cabeça quando todos à tua volta
A perdem e te culpam por isso;
Se mantiveres a confiança quando todos de ti duvidam,
Sendo porém tolerante para com a sua desconfiança;
Se puderes esperar sem que a espera te fadigue,
E rodeado de falsidade não enveredares também pela mentira
Ou sendo odiado não cederes ao ódio,
E contudo não pareceres demasiado bom ou sabedor;

Se conseguires sonhar – e não seres dominado pelos sonhos;
Se souberes pensar – sem que pensar seja o teu objectivo;
Se conseguires lidar com o triunfo e o desastre
E tratar esses dois impostores por igual;
Se puderes suportar ver a verdade que falaste
Distorcida por patifes e feita embuste para tolos,
Ou ver por terra tudo aquilo a que dedicaste a vida
E inclinares-te para o reerguer com ferramentas já gastas;

Se fores capaz de reunir todos os teus ganhos
E arriscá-los de uma só vez, cara ou coroa,
E perdendo, começares tudo de novo
Sem uma palavra sobre as tuas perdas;
Se conseguires forçar o teu coração, os teus músculos e fibras
A subsistir muito para além dos limites
E assim resistir quando já não resta
Senão a vontade que lhes comanda: "Resisti!"

Se souberes falar com a turba sem abdicar da rectidão
E no convívio dos reis não perderes a simplicidade;
Se nem adversários nem amigos queridos te puderem magoar;
Se todos os homens contarem para ti, mas nenhum demasiado;
Se puderes preencher o minuto inexorável
Com sessenta segundos de corrida de fundo,
Tua será a Terra e tudo o que nela há,
E, mais que isso, meu filho, serás um homem!


Kipling

La vida es un tango y el que no baila es un tonto

La vida es un tango y el que no baila es un tonto
Dos calhaus da memória ao empedernido dos tempos

Onde a liquidez da água livre

Onde a liquidez da água livre
Também pode alcançar o céu

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